George W. Bush participava de um prosaico encontro com crianças numa escola da Flórida, em 11 de setembro de 2001, quando recebeu a notícia ao pé do ouvido: “Os Estados Unidos estão sob ataque”. Pouco depois, o então presidente americano embarcou no Air Force One, rumo a Washington, contra a vontade de sua conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice. De um bunker na Casa Branca, ela fez com que Bush fosse mantido no ar por motivos de segurança, escoltado por caças militares. Enquanto observava pela televisão as duas torres do complexo World Trade Center, em Nova York, arderem em chamas e ruírem — e trabalhava para manter o presidente vivo —, Condoleezza foi tomada por um pensamento. “Temos de transmitir ao mundo a mensagem de que o governo americano não está acéfalo. Aquelas imagens davam a impressão de que o país estava desmoronando. Meu desafio era manter a cabeça no lugar e garantir que não houvesse pânico pelo mundo afora”, disse. A preocupação com a imagem dos Estados Unidos em um momento de inominável tristeza não era trivial: Condoleezza tinha plena noção da relevância da democracia americana no contexto global — fundamento evidenciado pelos últimos acontecimentos no Afeganistão.
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O relato da conselheira, que viria a ser secretária de Estado no governo Bush, o mais alto título no gabinete presidencial, é um entre os 500 que compõem o ótimo livro O Único Avião no Céu, do historiador e jornalista americano Garrett M. Graff, recém-lançado no Brasil. Em ritmo de thriller, a obra recria em ordem cronológica o dia dos ataques, há exatos vinte anos, por meio de depoimentos de sobreviventes, entre bombeiros, policiais, militares, políticos e tantas outras testemunhas do dramático evento.
Os relatos orais não são melhores nem piores que a narrativa oficial, mas complementares. A oralidade sincera e emotiva, ponto alto da obra, distancia-se da objetividade fria e acadêmica da história com agá maiúsculo, dando ao ocorrido uma dimensão humana. Assim, é possível ter acesso tanto às versões dos trabalhadores anônimos vizinhos do WTC, como do alto escalão do governo — e até entrar no Air Force One naquele dia em que, mantido no ar enquanto o espaço aéreo foi fechado, dá título ao livro.
Uma interessante testemunha, aliás, é Ellen Eckert, estenógrafa que anotava as conversas e as reações do presidente no avião. Durante um telefonema de Bush com assessores na Casa Branca, seu escritório aéreo foi esvaziado, exceto pela presença de Ellen, que o descreveu como “calmo” diante do caos. A estenógrafa se revelou outra prova da força da democracia americana: mesmo atordoado pelos ataques, o governo prezou pela importância de documentar aquele momento para as futuras gerações.
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Mesma linha de pensamento teve Sunny Mindel, a assessora de comunicação do então prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani. Ela conta que tentou encobrir com as mãos as câmeras que registravam corpos caindo dos prédios. Desistiu: “Aprendi que jamais se tapa a lente de uma câmera. A história precisa desse registro”. No mesmo local, o policial David Brink sentiu o peso da impotência diante do horror. “Vi grupos de quatro pessoas saltando dos prédios de mãos dadas, formando correntes. Eu olhava para cima e pensava: ‘Quero ajudar vocês. Por favor, aguentem firme’. Mas sabia que não podia fazer nada”, lembrou.
Há ainda episódios comoventes que foram literalmente soterrados pela magnitude da queda das torres de 110 andares e mais de 400 metros. Como o resgate do padre Mychal Judge, um simpaticíssimo e querido irlandês que era capelão dos bombeiros. A imagem dos colegas carregando Judge se tornou uma das mais icônicas daquele dia. O padre não resistiu e morreu. Seu corpo foi o primeiro a ser liberado; seu atestado de óbito tem o número 1. Oficialmente, Judge foi a primeira vítima do 11 de Setembro.
Outras histórias provocam esperança e também assombro. É o caso do funcionário de um escritório que escapou da morte porque teve de descer ao térreo para liberar a entrada de um colega que tinha esquecido sua carteira em casa; ou da funcionária que foi demitida no dia 10 de setembro, o que a salvou da morte; e do bombeiro que trabalhou por horas pensando que sua mulher tinha morrido no atentado e a encontrou viva no fim do dia.
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De maneira dramática, mas inequívoca, o século XXI foi inaugurado com o 11 de Setembro. Suas consequências reverberam até hoje. É inimaginável, por exemplo, embarcar em um avião com um cortador de unha na bagagem de mão — os terroristas da Al-Qaeda embarcaram com facas, dizendo serem colecionadores. O constante medo de um novo atentado se tornou parte do cotidiano americano. Nem a morte de Osama bin Laden, em 2011, no Paquistão, amenizou o temor. “Estamos mais seguros hoje”, afirmou a VEJA o almirante William H. McRaven, 65 anos, que supervisionou a operação (leia a entrevista). A atual retomada do Afeganistão pelo terror do Talibã, porém, põe em xeque a afirmação. É dever da humanidade, portanto, manter viva a memória daquele dia infame, não somente para evitar que se repita, mas como homenagem à vida e à liberdade — os bens mais caros da civilização.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752