O relator especial das Nações Unidas sobre direito à alimentação, Michael Fakhri, disse nesta terça-feira, 27, que Israel “intencionalmente” mata a população da Faixa de Gaza por fome, de forma a constituir um crime de guerra – o Tribunal Penal Internacional (TPI) estabelece que privar civis dos meios de subsistência e impedir a entrada de ajuda humanitária se enquadram nessa violação – e genocídio.
“Não há razão para bloquear intencionalmente a passagem de ajuda humanitária ou destruir intencionalmente navios de pesca de pequena escala, estufas e pomares em Gaza – a não ser negar às pessoas o acesso aos alimentos”, disse ao jornal britânico The Guardian.
“Privar intencionalmente as pessoas de alimentos é claramente um crime de guerra. Israel anunciou a sua intenção de destruir o povo palestiniano, no todo ou em parte, simplesmente por ser palestiniano. Na minha opinião, como especialista em direitos humanos da ONU, esta é agora uma situação de genocídio. Isto significa que o Estado de Israel na sua totalidade é culpado e deve ser responsabilizado – não apenas os indivíduos ou este governo ou aquela pessoa”, acrescentou.
A fome é considerada um crime de guerra pelas Convenções de Genebra, pelo Estatuto de Roma e pelo Conselho de Segurança da ONU. Em Gaza, 95% das famílias reduziram a quantidade e a frequência das refeições – parte das crianças pequenas, inclusive, está parando de receber alimentos. Desesperados, alguns pais oferecem ração animal aos filhos em uma tentativa mantê-los vivos.
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Panorama de desnutrição
Em janeiro, a entidade emitiu um alerta sobre fome “generalizada” na região. Exames nutricionais realizados em abrigos e em centros de saúde mostraram que quase 16% das crianças com menos de dois anos de idade estavam desnutridas ou definhando no norte de Gaza, onde 300 mil pessoas estão encurraladas e sem acesso à ajuda humanitária.
“A velocidade da desnutrição de crianças pequenas também é surpreendente. Os bombardeamentos e a morte direta de pessoas são brutais, mas esta fome – e o desgaste e o atraso no crescimento das crianças – é torturante e vil”, condenou Fakhri, que é professor de Direito na Universidade de Oregon. “Terá um impacto a longo prazo na população física, cognitiva e moralmente. Tudo indica que isto foi intencional.”
Mas a insegurança alimentar já fazia parte do cotidiano dos residentes de Gaza antes da guerra: quase 80% deles dependiam de ajuda humanitária em razão do bloqueio imposto por Israel há 16 anos. Fahkri pontou que “já era uma situação muito frágil”, mas o início do conflito fez “com que todos passassem fome porque a maioria das pessoas estava à beira do abismo”.
A desnutrição suprime o sistema imunológico e, como consequência, aumenta a suscetibilidade a doenças. Entre outubro e janeiro, a Organização Mundial de Saúde (OMS) registrou 179 mil casos de infecção respiratória aguda; 136,4 mil de diarreia em menores de cinco anos; 55,4 mil de sarna e piolhos; e 4,6 mil de icterícia entre palestinos.
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Situação em Rafah
Em Rafah, 5% das crianças com menos de dois anos sofriam de subnutrição aguda, de acordo com o relatório de janeiro. Antes do confronto, o índice era de 0,8% na Faixa de Gaza. A cidade de Rafah entrou na mira de Israel nas últimas semanas e foi alvo de acusações do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, de que se tratava do último “reduto de comando” do Hamas.
Os incessantes bombardeios são justificados por Tel Aviv como resposta justificada ao ataque surpresa dos militantes, em 7 de outubro, quando 1.100 israelenses foram mortos. Em contrapartida, o número de vítimas palestinas está prestes a alcançar 30 mil.
“Israel alegará que há exceções aos crimes de guerra. Mas não há excepção ao genocídio e não há qualquer argumento sobre a razão pela qual Israel está a destruir infraestruturas civis, o sistema alimentar, os trabalhadores humanitários, e a permitir este grau de desnutrição e fome”, contrapôs o especialista. “A acusação de genocídio responsabiliza todo um Estado e a solução do genocídio é a questão da autodeterminação do povo palestiniano.”
Nesta segunda-feira, 26, as Forças de Defesa de Israel (FDI) apresentaram um plano de retirada dos moradores de Rafah para que os soldados prossigam com as operações. Metade da população de Gaza foi deslocada para a cidade ao sul sob orientações anteriores da administração Netanyahu, que agora lança ataques aéreos ao local. Por lá, os recém-chegados vivem em tendas improvisadas e em meio à escassez de medicamentos.
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Sem investimento
No mês passado, mais de uma dúzia de países retiraram investimentos para a Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras aos Refugiados da Palestina (UNRWA) após um suposto escândalo de envolvimento de doze funcionários – dentre os quais nove foram demitidos, dois estão sendo investigados e um morreu – nos ataques de 7 de outubro.
Entre os países que cortaram os fundos estão Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Austrália, Canadá e Japão. Juntos, Estados Unidos e Alemanha representam 46% do montante geral, tendo cada um destinado à agência US$ 343,9 milhões e US$ 202 milhões, respectivamente, apenas no ano passado.
Com 30 mil funcionários, a UNRWA fornece alimentos, atendimentos médicos, educação e outros serviços básicos a quase 6 milhões de refugiados palestinianos na Faixa de Gaza, na Cisjordânia , no Líbano, na Síria, na Jordânia e em Jerusalém Oriental. Nesta sexta-feira, 23, a agência anunciou o encerramento dos trabalhos no norte de Gaza , onde os alimentos foram entregues pela última vez há cinco semanas.