No ocaso de seu longuíssimo reinado — 69 anos, e contando —, a rainha Elizabeth II desfruta enorme popularidade entre seus súditos. A maioria a acompanha e apoia nas horas difíceis que enfrenta com admirável fleuma aos 95 anos, como a morte do marido, príncipe Philip, o processo por abuso sexual que pesa sobre o filho preferido, Andrew, e a decisão do neto Harry de dar uma banana à realeza e se mudar com a família para os Estados Unidos. No fim de outubro, ela passou dois dias hospitalizada, por motivos não explicados, e cancelou uma série de compromissos para “descansar” — a incomum mostra de fragilidade desencadeou tamanha boataria que precisou dar umas voltas pelo Castelo de Windsor, dirigindo seu Jaguar verde, para provar que estava bem. Era se esperar, portanto, que a essa altura nenhum vassalo desalmado aparecesse para perturbar sua paz, certo? Errado. A população de Barbados, no Caribe, onde Elizabeth reinava soberana, acaba de trocá-la por uma presidente, Sandra Mason, em preparação para a proclamação da República no dia 30 de novembro.
A troca de regime era uma bandeira da primeira-ministra Mia Mottley, eleita por larga maioria em 2018 e ferrenha apoiadora da eliminação do que vê como os últimos resquícios do colonialismo no país — o primeiro do Caribe a receber escravos e deslanchar a produção intensiva de açúcar que se tornaria uma das riquezas do Império Britânico. “É hora de tomarmos as rédeas do nosso destino”, decretou Mottley após a aprovação por dois terços do Parlamento do nome de Mason, ex-juíza de 72 anos que até então era a governadora-geral da ilha, ou seja, a representante local da rainha. “A república representa o reconhecimento da nossa nacionalidade e identidade e o orgulho pela nossa cultura”, explicou o ministro da Juventude e Esporte, Dwight Sutherland, em nota enviada a VEJA.
Outras ex-colônias que mantiveram a monarquia depois da independência já haviam se desfeito dela posteriormente, mas há quase trinta anos — desde as Ilhas Maurício, em 1992 — que ninguém fazia essa desfeita a Elizabeth. Não houve, no entanto, animosidade na ruptura, anunciada com antecedência em setembro do ano passado, até porque o papel da soberana no governo de seus reinos distantes é pouco mais do que simbólico: ela indica sua representante, aprova (sem se intrometer) embaixadores e outros servidores, concede títulos de cavalheiros do reino e é o motivo da aplicação da palavra “Real” à polícia e demais instituições. Com a saída de Barbados, restam treze monarquias sob o cetro de Elizabeth, tirando o próprio Reino Unido. As maiores são Canadá, Austrália e Nova Zelândia; as demais se espalham por ilhas do Caribe, Índico e Pacífico.
A Austrália já levou a plebiscito a proposta de se tornar República, que acabou derrotada. Movimentos nesse sentido também ocorrem em Santa Lúcia e São Vicente e nas Granadinas, além da Jamaica, que cogita não só romper com a monarquia mas também encaminhar a Londres um pedido formal de reparação financeira pela exploração de escravos. O fortalecimento dos movimentos negros e as incertezas levantadas pelo Brexit são fatores que têm influído para esgarçar os laços das ex-colônias com a rainha britânica e não se considera improvável que outras repúblicas apareçam, sobretudo depois de sua morte. Nada disso, porém, deve afetar a existência da Commonwealth, associação que reúne 54 países, a maioria ex-territórios britânicos, e conduz uma cooperação informal que resulta em condições especiais de comércio e acesso a programas e recursos de impacto nas economias mais frágeis. E quem está no comando da Commonwealth? Ela mesma: a rainha Elizabeth.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763