Uma bem-sucedida ofensiva militar da Ucrânia em setembro do ano passado, recapturando cidades importantes e fragilizando posições russas, foi vista como a última incursão de peso na guerra entre os dois países antes da chegada do inverno congelante, quanto a temperatura cai a 20 graus negativos e impõe uma pausa nos combates. O frio, no entanto, não parou nenhum dos lados. Pelo contrário: a menos de dois meses de a invasão ordenada por Vladimir Putin completar um ano, no dia 24 de fevereiro, o que se vê é uma escalada do conflito. Do lado ucraniano, mais armado do que nunca, um ataque na disputadíssima região de Donbas resultou no maior número de soldados inimigos mortos de um só golpe desde que as hostilidades começaram. “As batalhas seguem dia e noite, apesar das condições do tempo. Tudo muda como um pêndulo, do sucesso e euforia quando avançamos à dificuldade quando o inimigo toma a dianteira”, resumiu Yegor Firsov, ex-deputado da Ucrânia que atua como médico na frente de combate.
Da parte de Moscou, intensificam-se os bombardeios da estrutura que fornece energia, aquecimento e água à população civil, depois de o presidente ter pela primeira vez usado a palavra “guerra” para descrever o que antes qualificava de “operação militar especial”. As duas partes têm, cada qual, seus motivos para lutar em meio a nevascas — sair fortalecido do inverno pode formatar a chance, remota que seja, de dar início a negociações para o fim da guerra. A Rússia admitiu a morte de ao menos 89 soldados no bombardeio ucraniano, via baterias americanas de longo alcance, de um centro para treinamento de recrutas — a Ucrânia fala em 400 mortos e 300 feridos. O ataque se deu em Makiivka, na área ocupada de Donetsk, uma das duas províncias de Donbas que a Rússia anexou em outubro, mas sobre a qual ainda peleja para ter controle total, situação que ocorre em todas as quatro regiões do leste da Ucrânia, coladas à sua fronteira, que supostamente passaram a fazer parte do território russo.
Em meio a uma chuva de críticas na mídia e nas redes sociais russas à inépcia dos comandantes militares que reuniram centenas de soldados em um único local próximo a um depósito de munições, uma comissão criada para investigar as circunstâncias do incidente culpou o “uso em massa” de telefones celulares, que permitiu a exata localização do alvo. Antes disso, às vésperas do Natal, drones de combate atingiram bases militares em território russo a mais de 600 quilômetros da fronteira, mostrando que o poder de fogo e a perícia dos ucranianos se amplia. Para Kiev, é crucial neste momento manter as tropas russas na defensiva e impedir que o comando militar use a esperada pausa de inverno para treinar os reservistas convocados, repor suprimentos e reagrupar a tropa.
Combatendo e avançando, o governo do presidente Volodymyr Zelensky pretende também preservar o apoio dos aliados ocidentais à causa e, em última instância, forçar a abertura de negociações. Putin, de sua parte, mantém-se firme na estratégia de atrito constante, obrigando civis a sofrer os efeitos do inverno implacável e brandindo a ameaça de usar armas nucleares. De acordo com a OMS, 10 milhões de ucranianos (um quarto da população) foram afetados pela falta de energia decorrente dos mais de 700 ataques desde o início da guerra e 2 a 3 milhões deixaram suas casas. “O racionamento deve durar até pelo menos o fim de março”, diz Serhiy Kovalenko, diretor da Yasno, principal fornecedora de energia da capital.
O presidente russo está ciente de que tem muito mais condições do que a Ucrânia de sustentar uma guerra prolongada, mas sente o desgaste da atuação decepcionante de suas tropas e do isolamento internacional. No início de dezembro, tanto Putin quanto Zelensky falaram em começar a negociar, cada qual colocando, no entanto, condições inaceitáveis para o diálogo. A Ucrânia exige que os russos abandonem todos os territórios conquistados não só nesta invasão, mas também a península da Crimeia, que anexaram em 2014, além de reparação pelos danos causados. A Rússia demanda reconhecimento por Kiev da condição de território russo tanto da Crimeia quanto dos quatro territórios anexados em outubro. Na quinta-feira 5, Putin anunciou um cessar-fogo de 36 horas para a celebração do Natal ortodoxo. Resta ver se o inverno — que, ao contrário das derrotas experimentadas por Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler no atoleiro russo, desta vez está do lado dos ucranianos — conseguirá eventualmente congelar o fluxo dos bombardeios e permitir uma abertura para a paz.
Colaborou Matheus Deccache
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823