O vazamento na segunda-feira de um documento que indica que a Suprema Corte dos Estados Unidos deve votar para derrubar a lei que garante o direito ao aborto no país trouxe incertezas aos americanos acerca de muitos dos seus direitos. A decisão de 1973, conhecida como Roe vs Wade, garante às mulheres o direito ao aborto até a 28ª semana de gestação, mas o novo projeto seria similar ao do estado do Mississipi, que em 2018 sancionou uma lei que veta a interrupção da gravidez depois de 15 semanas, incluindo casos de estupro e incesto.
O aborto está entre uma série de direitos fundamentais que o tribunal americano reconheceu, pelo menos em parte, como liberdades processuais “substantivas”, incluindo a contracepção, em 1965, o casamento inter-racial, em 1967, e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2015.
Se a Justiça americana derrubar a decisão Roe vs. Wade, o que pode acontecer já em julho, o aborto se tornaria instantaneamente ilegal em 22 estados. Com isso, esses direitos americanos poderiam estar ameaçados, por terem sido reconhecidos pela Suprema Corte “recentemente”.
Em entrevista à imprensa na Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, criticou o ex-presidente Donald Trump por apoiar grupos extremistas, como a ‘multidão Maga’, nomeada pelo slogan eleitoral de Trump ‘faça a América grande novamente’ (Maga, em inglês). O grupo apoia agendas conservadoras, como o fim da legalização do aborto.
“Quais são as próximas coisas que serão atacadas? Porque essa turma da Maga é realmente a organização política mais extrema que existe na história americana. Isso é muito mais do que aborto”, disse o democrata. “O que acontece se um estado mudar a lei, dizendo que crianças que são LGBTQ não podem estar em salas de aula com outras crianças? Isso é legítimo?”.
A questão está cada vez mais preocupante, uma vez que a maioria do tribunal é conservadora – com seis juízes contra três progressistas –, e tornou-se cada vez mais assertiva em suas pautas.
A decisão Roe vs. Wade é uma das mais importantes da Justiça americana e contenciosas do tribunal do século 20, pois reconheceu o direito à privacidade pessoal sob a Constituição americana e protege a capacidade da mulher de interromper sua gravidez.
A Suprema Corte confirmou a autenticidade do rascunho vazado, mas o chamou de preliminar. De acordo com o juiz que escreveu o documento, Samuel A. Alito, o direito ao aborto reconhecido no caso deve ser derrubado porque não é válido sob o direito ao devido processo legal da 14ª Emenda da Constituição. Ele também argumentou que o aborto não está “profundamente enraizado” na história e tradição dos Estados Unidos e rejeitou os argumentos de que é essencial por razões de privacidade e autonomia corporal.
Este foi o mesmo argumento que Alito usou para rejeitar a proposta de casamento de pessoas do mesmo sexo, em 2015, na qual ele disse que a promessa do devido processo legal da 14ª Emenda protege apenas direitos profundamente enraizados na história e tradição dos Estados Unidos.
Mesmo que esses direitos não sejam explicitamente mencionados na Constituição, eles estão ligados à privacidade pessoal, autonomia, dignidade e igualdade. Outros direitos podem ser considerados por juízes conservadores como fora dessa estrutura envolvendo direitos “profundamente enraizados” na história americana.
No documento, o juiz distinguiu o aborto de outros direitos porque destrói uma “vida potencial”, mas não fez questão de explicar de maneira significativa como essa diferença pode ser aplicada na prática.