O primeiro-ministro de Portugal, António Costa, renunciou ao cargo na última terça-feira 7, depois de se tornar alvo de uma investigação do Ministério Público sobre possíveis irregularidades em projetos de exploração de energia verde. Em seguida, foi dissolvido o parlamento e convocadas novas eleições legislativas – o que só deveria acontecer daqui a dois anos. Tudo isso elevou substancialmente a temperatura política Palácio de Belém. Há um temor generalizado de que, com o escândalo que derrubou o principal líder do Partido Socialista (PS), a ultradireita acumule forças para formar maioria na Assembleia da República ou mesmo ganhe musculatura para ser atraída para futuras alianças. Pesquisas mais recentes apontam que, desde o início deste ano, o Chega, controlado pelo extremista André Ventura, é o único partido, efetivamente, que têm conseguido ampliar seu eleitorado.
Um dos principais historiadores portugueses da atualidade, Fernando Rosas, cujo livro Salazar e os fascismos (Tinta-da-China, 2023) acaba de ser lançado no Brasil, defende que a democracia do país é forte, mas que a extrema direita está em movimento de ascensão em toda a Europa. “As próximas eleições dirão se esse processo se consolidará”, afirmou em entrevista a VEJA. Rosas não conheceu o salazarismo apenas na teoria, mas foi preso e torturado desde que começou a militância política, nos anos 1960. Além da ameaça do radicalismo de direita na atualidade, ele discorre sobre as origens do fascismo, perigosas batalhas para reescrever a história, e diz que o Brasil ainda precisa fazer um acerto de contas com seu passado ditatorial.
Em seu livro, o senhor destaca que o Estado novo português foi a mais duradoura das ditaduras europeias. Como António de Oliveira Salazar conseguiu cultivar esse autoritarismo por tanto tempo? Existem fatores externos e internos que explicam isso. As ditaduras ibéricas, quer a salazarista, quer a de Francisco Franco na Espanha, além de serem ditaduras antidemocráticas, eram fortemente anticomunistas. Isso fez com que, no contexto da Guerra Fria, os Estados Unidos contemplassem sua integração, ainda que paradoxal, no campo do mundo livre. Além disso, os americanos tinham uma base militar nos Açores desde 1944 – implementada não para combater a Alemanha, que já está praticamente derrotada na II Guerra, mas para projetar sua força na Europa, num quadro estratégico em que já se adivinha o confronto com a União Soviética. Isso também levou Portugal, a partir de 1949, a integrar a Otan. Ou seja, a ditadura de Salazar era amplamente aceita no chamado mundo ocidental, o que foi muito importante para a durabilidade do regime.
Dos fatores internos, por sua vez, destaca-se o fato de que o Estado combinava a violência preventiva com a violência repressiva. A censura à imprensa, cinema, teatro, bem como a criação de órgãos públicos que enquadravam ideologicamente a vida da família – a Legião Portuguesa, uma milícia anticomunista formada por jovens, a Organização das Mães para a Educação Nacional, que controlava a juventude nas escolas, ou a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, que fiscalizava ideologicamente os lazeres – instrumentalizou o cotidiano e levou à desmobilização cívica. Era como se houvesse uma linha invisível, que todos sabiam não poderem ultrapassar. Se ultrapassassem, sofriam com a outra violência, a repressiva. Por isso, o controle das forças armadas foi essencial para a durabilidade do salazarismo, assim como a cumplicidade da Igreja Católica, a quem a ditadura deu um conjunto de privilégios em troca de apoio. Nos altares, a Igreja apresentou o Estado Novo e Salazar como uma dádiva da providência divina a Portugal.
O salazarismo foi menos violento que as outras ditaduras do século XX? A ditadura portuguesa foi altamente repressiva. Mas há uma polêmica historiográfica, normal, acerca da natureza política do salazarismo. Estamos perante um regime fascista? Ou era um regime autoritário, mas diferente? A tese que defendo é que o fascismo, em todas as suas modalidades, é um casamento entre um fascismo conservador, oriundo de certos setores da direita tradicional, e o fascismo plebeu – presente nos setores intermediários das sociedades, muito castigados por crises econômicas, como os desempregados, ou os pequenos proprietários ameaçados no seu estatuto social. Esses grupos desenvolvem medo, insegurança e raiva, sentimentos diante dos quais líderes populistas pescam o seu apoio social, tal como a extrema direita hoje em dia. Vimos esse casamento na Itália, França, Espanha, Alemanha – e em Portugal também – dando origem a um novo tipo de ditaduras, que são as ditaduras fascistas. Esses regimes são caracterizados pelo ultranacionalismo, corporativismo, partidos únicos, milícias, posturas antidemocráticas e anticomunistas. Ou seja, o Estado Novo é uma das modalidades do regime fascista.
Salazar ainda é uma figura popular na memória portuguesa. O que explica esse fenômeno? Em todas as sociedades, durante tempos de crise, vemos o borbulhar dessa nostalgia retroativa. “No tempo do Salazar é que era bom”, podem dizer por aí. Esse sentimento existe no desespero social, naqueles setores intermediários da sociedade que eu havia citado, e que é campo fértil para a extrema direita. Mas a democracia portuguesa está bem enraizada, foi conquistada na rua pelas massas. Aqui não houve uma transição outorgada pela burguesia, como ocorreu na Espanha, o que faz diferença nessa questão da memória. Não diria que que Salazar é popular de forma generalizada.
Nações como a Alemanha mantêm o empenho de explicar os horrores produzidos pelo regime autoritário de Hitler, para que a história não se repita. Portugal deveria fazer mais nesta área? Sempre podemos fazer mais. Neste momento, na Europa, existe uma enorme disputa pelo sentido da memória, que é a matéria-prima da história. Isso porque a forma como se escreve a história do passado é aquilo que legitima as escolhas políticas do presente e do futuro. Essa luta exacerbou-se com a polarização social. Não acredito que deve haver um consenso mínimo acerca da história, porque ela é exatamente uma disputa memorial, mas, nessa disputa, os vários interlocutores precisam expor seus pontos de vista abertamente para que os cidadãos possam livremente escolher aquilo que serve à sua maneira de ser cidadão. É uma luta democrática. Hoje, a direita tenta reformular a memória, movimento que também está presente em Portugal, de forma a tentar produzir uma história única. Isso, essencialmente, a deturpa. Como historiador, deixo os consensos para a política.
Ao receber o coração de d. Pedro I por ocasião da celebração dos 200 anos de Independência, em 2022, o então presidente Jair Bolsonaro evocou o lema cunhado por Salazar: “Deus, Pátria e família”. O Brasil falhou em defrontar-se com sua própria ditadura? Que Bolsonaro tenha usado esse lema não me surpreende. Como um regime de extrema direita, essa nostalgia do passado é quase pré-requisito. Agora, no quadro da América Latina, o Brasil é um dos únicos países que sofreu com uma ditadura violenta no qual não houve atribuição de responsabilidades, nem julgamentos por crimes contra a humanidade. A nação transitou da ditadura militar para a democracia sem fazer um acerto de contas. Essa ausência de responsabilização e de debates sobre o passado beneficiou o bolsonarismo, alçando ao poder um líder meio bufão, histriônico e incompetente. O Brasil vai ter que ultrapassar essa dificuldade de lidar com a memória de uma forma ou de outra. Mesmo que os responsáveis pelas torturas, assassinatos e outros crimes cometidos pela ditadura estejam mortos. Sem isso, há aí um nó na garganta que nunca mais passa, gerando atraso brutal para a consolidação da democracia.
O senhor nasceu em plena ditadura salazarista. Como era a vida sob o regime autoritário? Nasci em 1946, fim da II Guerra, de uma família de classe média. Fui criado em meio a tradições republicanas e antifascistas, sobretudo da parte da minha mãe. Meu avô resistiu à ditadura com armas na mão. Por isso, a política pela democracia esteve sempre à mesa, presente no cotidiano.
Já no fim da escola, tornei-me um militante ativo contra o autoritarismo. Então, eu próprio acabei preso várias vezes. Condenado, passei alguns anos na cadeia. Também fui torturado pela polícia política. Viver sob a ditadura, para mim, foi viver sempre na expectativa de ser preso mais uma vez. Precisei ficar na clandestinidade quando saí do cárcere, e estava escondido em uma maternidade quando chegou o 25 de abril, a Revolução dos Cravos, que depôs o Estado Novo. Foi o primeiro dia do resto da minha vida. Aos 78 anos, vejo minha existência dividida em dois períodos absolutamente distintos: da repressão, e da liberdade.
Motivado por essa experiência, como historiador, meu maior desejo era tentar responder justamente à pergunta: como foi possível uma ditadura destas durar quase meio século?
O senhor chegou a ser preso duas vezes e foi torturado na cadeia. Pode contar um pouco sobre como esse trauma o afetou ao longo da vida? O que o fez seguir lutando? Não me afetaram. Nem a mim, nem a muitos outros. Ou desistia e aceitava a ditadura, ou continuava a lutar. No tempo do fascismo, passei por todas as prisões políticas do regime. O Forte Caxias, o Forte Peniche, a cadeia do Aljube. Todos eram centros de resistência, escolas de militância, de educação política. A resposta que demos à repressão era nos prepararmos para continuar a luta quando saíssemos. Não tinha outra opção. Me orgulho de pertencer a uma geração que, em grande parte, continuou a lutar. Até hoje em dia, nesta Europa onde a extrema direita cresce.
O senhor foi deputado e candidato à Presidência da República. Como transferiu o ativismo intelectual e nas ruas para a política? Passei mais de vinte anos interessado pela política, mas sem militar politicamente em nenhuma organização. Enquanto desenvolvi a minha carreira acadêmica, sempre fiz questão de acompanhar a política. Finalmente, em 1999, aderi à formação do Bloco de Esquerda, sem nunca abandonar a universidade. Mesmo durante minha campanha pela Presidência da República, em 2001, e como deputado por dez anos no Parlamento português, não deixei de pesquisar, escrever, ensinar. Ambas atividades são intrínsecas, para mim.
Por que não concorreu novamente à Presidência? Rapidamente, percebi que minha vocação é o ensino e a investigação. Dei lugar a outros, aos mais jovens. Dou muita importância à renovação, em termos de idade e de gênero. Claro, de vez em quando, ainda dou também meus pitacos sobre a política do país. E não me entenda mal, respeito muito a política. Quando feita em nome de valores, tem poder transformador. Mas acho que contribuo mais com a sociedade como historiador, porque a política não pode dispensar a história. É nisto que eu me entendo.
Observamos uma preocupante ascensão da extrema direita populista em vários cantos da Europa, inclusive na Alemanha, Itália e Espanha, todos com ditaduras violentas na história. Portugal corre o mesmo risco? Ainda há dez anos parecia que a extrema direita não ia desembarcar em Portugal. E aí está, com 12 deputados eleitos na Assembleia da República, em processo de ascensão. As próximas eleições dirão se esse processo se consolidará. Este é um fenômeno europeu generalizado, que se beneficia dos destroços econômicos e sociais deixados pelas crise do neoliberalismo. Fechamentos de empresas, falências, desemprego, precariedade e restrição dos direitos trabalhistas – a extrema direita pesca apoio nesse desespero, vendendo uma solução demagógica, miraculosa, definitiva, de glória nacional, que agrupa todos e todas sem distinção.
Na orelha do livro, o autor Lira Neto se pergunta se “fascista” virou palavrão ideológico para criticar aqueles com quem não concordamos. Há hoje algum governo que pode ser corretamente enquadrado nesta categoria? A nova extrema direita distingue-se do fascismo em vários aspectos. Observa formalmente a democracia, justamente para poder esvaziá-la. A extrema direita engravatou-se, quer-se dizer respeitável. Utiliza instrumentos de propaganda perigosíssimos, os quais o fascismo canônico não utilizava, que são as redes sociais. É hábil em captar o descontentamento social através da internet. Mas também é possível, e preciso, aprender com o fascismo canônico, estudar exatamente o que há de semelhante e diferente entre o fenômeno do passado e do presente. A geração dos meus netos que vai enfrentar isto.
Costumo dizer que há três grandes perigos reais que colocarão a humanidade em risco no futuro próximo. O primeiro é o clima – ou seja, matarmos todos a nós próprios devido às mudanças climáticas provocadas pela atividade industrial. O segundo é a guerra com narrativas imperialistas e anti-imperialistas, como a invasão da Ucrânia pela Rússia. O terceiro chamo de “melancolia democrática”, ou o esvaziamento das democracias, um fenômeno hoje alimentado pela extrema direita. Saber se venceremos estes desafios ou não está completamente em aberto.