Em viagens de alto simbolismo, o presidente Lula passou dois dias em Washington, no início de fevereiro, e se prepara para um encontro mais ambicioso em Pequim, em março, marcando presença, com diferença de poucas semanas, nos gabinetes das duas grandes potências mundiais — que, por motivos evidentes, vivem às turras. Ao contrário de como era na divisão do mundo no passado entre países dominantes, Estados Unidos e União Soviética, quando as alianças com um ou outro entrelaçavam política e economia e seguiam um manual conhecido, escolher lados agora é um exercício repleto de nuances, pleno de oportunidades e muito, mas muito mais complicado.
Em seus mandatos nos anos 2000, quando seu reconhecimento internacional estava no auge, Lula começou navegando bem a diplomacia entre os blocos, mas acabou por privilegiar o elo com a China, pela afinidade ideológica, e perdeu espaço nas relações com a Casa Branca. Agora, momento em que o nível de hostilidade entre americanos e chineses dispara, equilibrar-se entre os poderosos e encontrar o caminho que mais beneficie o Brasil exigirá do presidente um jogo de cintura especialmente engenhoso.
Lula desembarcou em Washington quando todos os olhos se voltavam para o céu — especialmente para os balões espiões que a China, aparentemente, vem espalhando pelo mundo. Quatro objetos foram abatidos em pleno voo sobre a América do Norte pela Força Aérea americana, mas apenas os restos do primeiro, que cruzou o espaço aéreo dos Estados Unidos até ser derrubado na Carolina do Norte, parecem comprovar a tese da espionagem, equipados com antenas e sensores de vigilância. Seria um incidente de menor proporção se não envolvesse a tensão à flor da pele nas relações entre Washington e Pequim. Lula, prudentemente, distanciou-se do imbróglio na sua conversa com Joe Biden — mas nem por isso deixou de ser pressionado para avalizar posições americanas em conflitos geopolíticos.
Biden é o terceiro presidente dos Estados Unidos com quem Lula se encontra. Em 2009, visitou Barack Obama, que famosamente o chamou de “o cara” e com quem se alinhava ideologicamente no campo dos programas sociais. Mas seu interlocutor mais chegado foi o conservador George W. Bush, com quem esteve em 2007 e compartilhou objetivos econômicos na área de combustíveis, sobretudo etanol. Mais à vontade ainda, esteve em 2009 com o presidente chinês Hu Jintao em Pequim e chegaram a firmar um pacto de ação conjunta em órgãos internacionais. No ano seguinte, Hu devolveu a gentileza, viajando ao Brasil para uma reunião dos Brics.
Biden é um político mais duro de roer: vem de uma ala neoliberal do Partido Democrata, distante das trincheiras petistas e oposta aos progressistas, liderados pelo senador Bernie Sanders, com quem Lula se encontrou logo ao chegar em Washington. Na conversa com Biden, o presidente brasileiro, de seu lado, trilhou uma agenda sem grandes polêmicas, focada em ambiente e democracia. O anúncio de que os Estados Unidos passarão a contribuir com o Fundo Amazônia foi um gol diplomático e a menção a duas datas de insurreição por turbas da extrema direita — 6 de janeiro de 2021, quando o Congresso americano foi invadido, e 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas depredaram Câmara, Senado e STF — favoreceu um “clima forte de identificação” entre os dois mandatários, segundo fontes familiarizadas com o assunto. Já Biden eximiu-se de apresentar qualquer proposta de cooperação econômica e fez questão de tocar em assuntos espinhosos — obtendo, sim, concessões do lado brasileiro.
O presidente americano, empenhado em conter a ameaça da China no pódio geopolítico e anular a chance de uma vitória da Rússia na guerra contra a Ucrânia, apresenta-se como porta-estandarte da democracia e quer angariar aliados para a causa. Neste contexto, convidou Lula a participar, em março, da Cúpula pela Democracia, grupo que ele criou no início do governo para combater o autoritarismo ao redor do mundo. O convite contém uma pegadinha: na primeira edição, da qual Jair Bolsonaro participou de cara fechada, o tom anti-China era evidente, o que deve se repetir neste ano com um acréscimo de um novo integrante do lado de lá, o presidente russo Vladimir Putin.
A proposta lançada por Lula de formar um grupo de trabalho para buscar uma solução para a guerra na Ucrânia entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Biden deixou claro que, para ter voz ativa na negociação do fim do conflito, o brasileiro teria, primeiro de tudo, de reconhecer que a Rússia é o agressor que viola continuamente o direito internacional e que a Ucrânia é sua vítima — deixando de lado declarações dúbias, como “quando um não quer, dois não brigam”. Lula balançou, mas cedeu: no fim, em uma declaração conjunta, os dois presidentes condenaram sem meias-palavras Moscou pela invasão do território ucraniano, pelo desrespeito ao direito internacional, pelas mortes e pelos ataques a alvos civis.
Da mesma maneira, os Estados Unidos buscam definir quem está do lado de quem no que vem sendo chamado de “nova Guerra Fria” — embora esta seja impulsionada por um conflito quentíssimo. “O mundo já está dividido em dois blocos embrionários, um liderado pelo Ocidente, e o outro pelo presidente chinês Xi Jinping”, diz Francisco Urdinez, diretor do Núcleo Millenium de Impactos da China na América Latina da PUC Chile. Nas últimas duas décadas, a China investiu pesado nos países latino-americanos, tornando a região o segundo maior receptor de aportes diretos de Pequim depois da Ásia, e fazendo dos chineses o maior parceiro comercial da América do Sul. Mais de vinte países da região se juntaram à sua Nova Rota da Seda, megaprojeto de 5 trilhões de dólares para conectar os continentes por rotas marítimas e terrestres, favorecer exportações chinesas e moldar uma esfera de influência chinesa. Trata-se de um vínculo difícil de quebrar, pelos benefícios comerciais que acarreta.
No Brasil, a China substituiu os Estados Unidos como maior parceiro comercial em 2009, após quase um século de hegemonia americana. Em vinte anos, o valor dos bens comercializados entre Brasil e China (veja o quadro) passou de 3 bilhões de dólares para 152,7 bilhões de dólares, ou cerca de 40% de todas as trocas brasileiras, enquanto as transações com os americanos representam 15%. Os Estados Unidos, claro, se esforçam por reverter essa situação e suas empresas lutam para não perder mais espaço para os chineses, mas nesta nova ordem mundial prevalece o mote de “amigos, amigos, negócios à parte”. Ou seja: aliar-se ao discurso americano da democracia versus autocracia não impede que o mundo continue a se beneficiar do baixo custo das mercadorias da China.
A opção preferencial pelas considerações políticas ficou nítida na enxurrada de incentivos recebidos pela taiwanesa TSMC para instalar uma megafábrica no estado do Arizona, não pelo que ela possa acrescentar à balança comercial americana (a conta, pelo menos no início, deve ser negativa), mas para remover da disputada Taiwan o fornecimento dos chips – a TSMC produz 70% dos mais tecnologicamente avançados — que movem a engrenagem do planeta. Entra também nessa conta a campanha mundial americana contra a gigante eletrônica chinesa Huawei e até o popular TikTok, demonizados pelo potencial de obter e repassar informações sigilosas do Ocidente para Pequim.
A Casa Branca explora ainda a possibilidade de estimular a fabricação em países das Américas — mais perto, portanto, de sua zona de influência, atrelada a produtos de tecnologia sensível, como carros elétricos e seus implementos, uma estratégia que ganhou o nome de nearshoring e tem o propósito de reduzir a dependência da China no Ocidente — um projeto embrionário e sem perspectivas de curto prazo para o Brasil. Na briga política para enfraquecer o poderio chinês, outras nações, como México e Canadá, saem na frente. “A América Latina e o Brasil, por extensão, têm relevância marginal na diplomacia americana”, diz Paulo Velasco, professor de política internacional da Uerj. Para mudar esse estado de coisas, o Brasil, maior economia da região, precisa assumir posições que podem ser difíceis de engolir pelo atual governo. Exemplo desse tipo de saia justa é visto agora no México: os Estados Unidos já manifestaram seu interesse em financiar a instalação de fábricas no país, mas o presidente esquerdista Andrés López Obrador, o AMLO, tem resistido ao canto de sereia do gigante do Norte.
Lula declarou que pretende se guiar pelos interesses nacionais, estabelecendo parcerias com ambas as potências onde for mais conveniente, e que não tem intenção de tomar partido, sobretudo em momentos de agravamento de tensões. Não é opção para o Brasil (nem para grande parte do mundo) se afastar economicamente de Pequim. Tampouco é sustentável distanciar-se de Washington e de sua agenda contrária às investidas chinesas. “Teremos de fazer concessões desconfortáveis a ambos os lados”, prevê Cynthia Arnson, ex-diretora do programa de América Latina do Instituto Wilson Center, de Washington. O pragmatismo, nesse mundo novo, é a palavra de ordem.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829