Ela buscou o pai biológico e trouxe esperança para sul coreanos adotados
A história de Kara Bos abre caminho para que pessoas abandonadas na Coreia do Sul, um dos maiores fornecedores de crianças para adoção, conheçam seu passado
No dia 18 de novembro de 1984, Kang Mee-sook foi abandonada em um estacionamento na Coreia do Sul, quando tinha apenas dois anos de idade. Acolhida por um orfanato local, a menina teve a sorte que faltam a muitas crianças na mesma situação: conseguiu um lar, do outro lado do mundo, junto a uma família americana, do estado do Michigan. Mais de trinta e seis anos depois, depois de uma árdua e solitária busca sobre seu passado, Kang, agora sob o nome de Kara Bos, conseguiu um fato inédito na justiça sul-coreana: obteve o reconhecimento de seu pai biológico.
“Parecia o destino”, disse Kara à VEJA. “Aos dois anos, não tinha nenhum poder sobre o que acontecia comigo. Mas, aos 38, finalmente pude dizer que essa injustiça de não saber minha origem não poderia continuar.”
A decisão deu esperança para muitas crianças nascidas na Coreia do Sul em busca de seus pais biológicos. Kara é apenas um dos milhares de bebês sul-coreanos enviados anualmente para adoção no exterior, durante os anos 1970 e 1980. A prática transformou o país “no maior fornecedor internacional de crianças para adoção”, de acordo com a Anistia Internacional.
Ela sempre soube que não era a filha biológica de seus pais americanos, já que a família adotiva era branca, de olhos claros, mas demorou a sentir necessidade de desvendar seu passado. Apenas quando teve seu segundo bebê, uma menina, Kara se perguntou: “como uma mãe poderia abandonar uma criança?”.
“Ver minha filha com dois anos de idade, usando as roupinhas que eu mesma usei quando me trouxeram para os Estados Unidos, desencadeou a busca pelos meus pais”, conta ela.
Em 2016, ela começou a procurar. Se deparou com arquivos incompletos de adoção, sem nome e endereço da mãe, ou pai. No primeiro ano, ela só encontrou um documento, comprovando que seu nome de nascimento era Kang Mee-sook. Decidiu, então, fazer um teste de DNA e enviá-los para os sites Family Tree e My Heritage, plataformas que cruzam o mapeamento genético dos inscritos em busca de correspondências. Nada. No segundo ano, foi à Coreia do Sul para pendurar panfletos, entrevistar pessoas no local onde foi encontrada e visitar o orfanato. Nada, de novo!
Em 2018, terceiro ano de busca, Kara descobriu que havia ficado sob a custódia de uma assistente social antes de sair do país. Até chegou a conversar com ela, agora uma senhora, mas não conseguiu mais nenhuma informação sobre seus pais. Com tantos tiros n’água, Kara desistiu de sua busca.
“Sempre acreditei em toda a história da adoção, do resgate de criança. Mas quando comecei a me aprofundar na busca, percebi que o processo é muito falho”, diz Kara.
Em janeiro de 2019, algo inesperado mudou a história: a plataforma My Heritage encontrou uma correspondência para Kara – um primo que havia feito o teste por diversão. Os dois se aproximaram e ela conheceu outra prima biológica apontada com 17% de probabilidade de ser sua parente. Pelas evidências circunstanciais, o pai de Kara deveria ser o avô da menina.
Contudo, quando o resto da família ficou sabendo, os laços recém-formados foram cortados imediatamente. Chamada de invasora, mentirosa e vigarista, ela foi impedida de conversar com qualquer parente.
“Foi então que eu apareci na casa da minha meia-irmã, na Coreia, e implorei de joelhos por ajuda”, conta Kara. Na cultura coreana, o gesto é um sinal de desespero, humildade e submissão. Em resposta, a meia-irmã chamou a polícia.
“Nunca me imaginei fazendo isso, mas não havia mais nada que eu pudesse fazer, só queria saber quem era minha mãe. As pessoas adotadas não possuem direitos a essas informações, portanto, nenhuma autoridade coreana podia me ajudar”, completa.
Neste contexto, a americana decidiu entrar com um processo contra a família, que obrigou o suspeito a fazer um teste de DNA. O resultado atestou, com 99,9% de certeza, que ele era seu pai. O dado, finalmente, pôde ser utilizado como evidência no tribunal, que deu caso ganho para Kara. Ela descobriu, posteriormente, que apenas neste dia seu pai biológico ficou sabendo da história toda.
“Se estavam com medo que eu buscasse direitos de herança, foi exatamente a pressão que fizeram para levar o caso ao tribunal que me deu esses direitos. Mas esse nunca foi meu objetivo”, diz Kara. Mesmo assim, o caso abriu precedentes para outros descendentes vasculharem seu passado, com a possibilidade de reivindicar herança e cidadania sul coreana.
Com ajuda da mídia, ela pressionou a família para um encontro com esse sul-coreano misterioso, de 85 anos. Foi assim que, em 15 de junho, Kara se reuniu com seu recém-descoberto pai – de óculos escuros e chapéu –, acompanhado por um advogado, um tradutor e dois guarda-costas. Areunião durou apenas 10 minutos e o pai não quis saber da filha, nem fornecer o nome da mãe biológica. Alegou apenas que não tinha nada a ver com a história.
“Primeiro, pensei que todo esse esforço, trauma e lágrimas tinham sido para nada. Mas não quero que ninguém mais tenha que passar pelo que eu passei, tive que fazer tudo sozinha”, explica Kara.
Ela completa: “Fico feliz de poder compartilhar minha história, espero que gere mudanças nas leis em vigor para proteger o direito fundamental de saber nossas origens”. Segundo a americana, não é incoerente que uma pessoa seja feliz com a família adotiva e, mesmo assim, queira conhecer a biológica.
Agora, sua única esperança de encontrar a mãe biológica recai sobre os ombros dessa figura desconhecida. Ao sair do tribunal, Kara perguntou às câmeras: “Mãe, você reconhece meu rosto?”