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Edward Snowden: Em nome do interesse público

Para o ex-agente da CIA, o vazamento dos diálogos da Lava-Jato é útil — e pouco importa de onde veio a informação

Por Fernando Molica e Maria Clara Vieira
Atualizado em 4 jun 2024, 15h41 - Publicado em 20 set 2019, 06h30
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  • Aos 22 anos, o analista de sistemas Edward Snowden já trabalhava para a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, a NSA, e logo se juntaria à equipe de espionagem da CIA. “Eu me sentia no topo do mundo”, diz ele, que em seus oito anos no ramo teve papel relevante ao aperfeiçoar mecanismos para monitorar pessoas e governos. Baseado no Havaí, era um ilustre desconhecido, como reza o ofício, quando, em 2013, trouxe a público, com o apoio do jornalista americano Glenn Greenwald, hoje no The Intercept Brasil, documentos ultrassecretos que deixavam clara a vigilância americana a cidadãos comuns, escândalo que fez alterar leis mundo afora. Depois disso, Snowden teve o passaporte cancelado pelos EUA, onde é alvo de ação criminal, e mora na Rússia com a mulher — epopeia que relata no livro Eterna Vigilância (Editora Planeta), lançado na terça-feira 17, que, aliás, lhe rendeu novo processo (o governo americano pede 100% dos direitos autorais). Snowden, hoje com 36 anos, falou a VEJA de Moscou por vídeo.

    + ENGLISH VERSION: Edward Snowden: In the public interest 

    Qual a opinião do senhor sobre a divulgação de diálogos entre juízes e procuradores no Brasil, o escândalo da Vaza-Jato? Toda publicação de conversa privada causa algum desconforto, mas acho que ministros, políticos, procuradores e juízes devem estar sujeitos a desconfortos desse tipo. São eles que decidem quem vai para a cadeia, quem é libertado, quem vive, quem morre, como será nosso futuro. Não importa de onde a informação veio. Se ela é de interesse público e verdadeira, que seja divulgada.

    Mesmo ao custo de denúncias pesadas? O senhor, por exemplo, foi incriminado de traição nos Estados Unidos, ao ter revelado segredos de Estado. A acusação tem fundamento? Não. Uma das questões que me absorveram por mais tempo antes de eu vir a público foi essa ideia do juramento eterno que fiz ao governo americano quando ingressei no serviço secreto. No momento em que denunciei os abusos na vigilância praticada pelos órgãos de Estado, muita gente disse: “Você rompeu o pacto”. Mas olhe o problema filosoficamente. Ao entrar na NSA, jurei apoiar e defender não o governo, nem a agência, mas a Constituição americana contra qualquer inimigo. Logo em seguida, assinei um contrato amplo e confuso com o governo, garantindo o sigilo integral das informações com as quais trabalhava. Só que esses dois juramentos colidiram. Pois os segredos que jurei proteger violavam claramente a Constituição que eu devia respeitar. Está escrito lá: a privacidade é um direito do cidadão.

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    Como esse direito constitucional vem sendo violado? Na última função que ocupei, eu mexia com um programa chamado Xkeyscore, o Google dos espiões. Monitorava o comportamento de milhões de pessoas, gente que não tinha nada a ver com terrorismo, em busca de alguma anormalidade. Às vezes, o uso do programa era cruel. Jovens colegas meus invadiam e-­mails e podiam ler absolutamente tudo. Imagina esse poder nas mãos de uma turma de 18, 20 anos? Claro que houve um monte de desvios. Há pelo menos treze casos documentados de rapazes flagrados vigiando a namorada, vendo nudes. Aliás, observei dois padrões em quem navega na internet: todo mundo publicou fotos de família e acessou um site de pornografia pelo menos uma vez na vida.

    “Toda publicação de conversa privada sempre causa algum nível de desconforto, mas acho que políticos, procuradores e juízes devem estar sujeitos a desconfortos desse tipo”

    É comum o acesso de governos e empresas ao conteúdo de mensagens privadas? Do ponto de vista tecnológico, isso pode acontecer facilmente, mas nem empresas nem governos estão muito interessados nesse tipo de espionagem. Antes de tudo porque o conteúdo dessas mensagens não é lá muito confiável. As pessoas mentem até a quem amam em conversas particulares. O que importa mesmo são os chamados metadados, registros perfeitos de atividades da vida privada, como fotos postadas, para quem você liga, que sites acessa, que livros compra. Hoje em dia é muito difícil não ser alvo desse tipo de vigilância. Enquanto seu celular está ligado, ele emite um sinal potente, como um grito que diz: “Ei, eu estou aqui”. E assim se abre a porta.

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    Há como evitar que informação tão particular seja rastreada? Não existe uma maneira 100% segura de fugir do monitoramento de grandes corporações e governos. Mesmo eu, que sou especialista, mudo o tempo todo de método para blindar minha comunicação, além de ter inúmeros aparelhos eletrônicos e jamais usar o wi-fi. Faço sempre uma minicirurgia em meus celulares: retiro microfone, câmera. Em geral, recomendo que as pessoas adotem a criptografia disponível nos aplicativos e evitem SMS e ligações de voz por linhas convencionais. É bom se preservar. A vigilância pode se transformar em algo abusivo.

    Onde mora o perigo? As pessoas que nos vigiam conhecem nossas fraquezas, padrões, interesses, preferências políticas e conseguem prever nossas ações. Daí seu poder de influenciar até em eleições. Fake news são construídas sob medida com base nesse gigantesco banco de dados sobre o comportamento das sociedades e têm se tornado armas para pavimentar o autoritarismo de figuras conhecidas, como Donald Trump, Vladimir Putin e Jair Bolsonaro.

    A vigilância exercida nos níveis que o senhor descreve não pode ser útil à segurança das pessoas? Na verdade, não. Na prática, os Estados Unidos têm ferramentas e agências com muito mais dinheiro do que qualquer outro país no planeta e elas jamais deram uma contribuição efetiva à segurança pública. O ex-presidente Barack Obama, inclusive, as investigou. Ele foi ao chefe da CIA, do FBI, da NSA, e concluiu: esses sistemas nunca salvaram uma única vida, nunca impediram um único ato terrorista.

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    Esses sistemas não ajudam nem mesmo a prevenir ataques de grupos terroristas que brotam nos fóruns secretos da deep web? Não. A vigilância em massa não protege as pessoas, e a razão é bem óbvia: se você coleta tudo sobre todo mundo, acaba não entendendo nada do que está ali. Definitivamente não resolve o problema de encontrar os verdadeiros terroristas. Sobre a deep web, essa zona supostamente mais escondida da rede, nada de mais acontece lá, só mesmo o tráfico de drogas hoje em dia. Os violentos fóruns que se reúnem para planejar a barbárie não estão nessa área da rede. Além disso, ainda que essa trilha conduzisse a algum lugar, persistiria uma pergunta crucial: vale a pena violar a privacidade de toda a sociedade para facilitar o trabalho dos fiscais da lei?

    Não vale? Não. O cerceamento da liberdade e da privacidade deve ser sempre o último recurso adotado contra qualquer um de nós. E, mesmo com toda a informação do mundo à disposição, não dá para impedir alguém de invadir uma creche ou pegar um machado e atacar um ônibus. O que podemos fazer é criar forças policiais confiáveis e fornecer a elas as ferramentas necessárias para investigar os crimes individualmente.

    Em 2013, quando o senhor denunciou o sistema de vigilância em massa nos Estados Unidos, nada mudou. Cinco anos depois, com o escândalo da Cambridge Analytica, empresa acusada de coletar dados para influenciar a eleição americana, o Facebook precisou se explicar. É sinal de avanço? Infelizmente, não vejo assim. Em vez de assumir a responsabilidade, o Facebook disse que não tinha errado e simplesmente lançou a culpa sobre a Cambridge Analytica.

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    O senhor está dizendo que suas denúncias não tiveram nenhum efeito? Não muito. A União Europeia aprovou o Regulamento-Geral sobre a Proteção de Dados, alguns programas de vigilância foram desativados nos Estados Unidos, mas outros tantos foram criados. Nesse meio-tempo, a Alemanha autorizou formas de vigilância em massa e a China está começando a usar reconhecimento facial indiscriminadamente, até mesmo para checar quando alguém sai de certas províncias. A boa notícia é que a tecnologia avança. Há pouco tempo atrás, menos da metade das comunicações do mundo era criptografada. Em 2016, chegava a algo em torno de 70%.

    O senhor relata no livro ter sido abordado para trabalhar para o serviço secreto russo. Como aconteceu? Eu estava na Rússia apenas para uma escala, rumo ao Equador, que me prometeu asilo quando soube que o governo americano havia cancelado meu passaporte. Em Moscou, fui levado para um lounge cheio de homens de terno preto. Entendi logo que eles eram do serviço secreto russo e que me queriam. Disse: “Muito obrigado, mas não estou interessado”.

    “Ao longo dos anos, observei dois padrões em quem navega na internet. Todo mundo publicou fotos de família e acessou algum site de pornografia pelo menos uma vez na vida”

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    O senhor chegou a colaborar com o governo russo? Não. Se tivesse feito isso, teria saído do aeroporto como herói nacional, mas ocorreu justo o contrário: passei quarenta dias sem sair do aeroporto, vivendo de hambúrguer, à espera do que me aconteceria.

    Como é sua relação com o governo Putin? Os russos estão muito desconfortáveis com a minha presença aqui. Sempre que posso critico as políticas locais de direitos humanos e de vigilância em palestras e na internet.

    O senhor considera um dia voltar para se submeter a julgamento nos Estados Unidos? Durante as negociações, minha única condição para retornar a meu país e enfrentar o tribunal, correndo o risco de pegar prisão perpétua, é que o júri leve em conta as razões de eu ter feito o que fiz. Segundo as leis pelas quais estou sendo julgado, o relato do meu lado da história não terá peso algum.

    As pessoas próximas o condenaram pelo que fez? Minha mulher não sabia do meu plano de entregar os documentos secretos. Se eu tivesse contado a ela, o FBI a teria acusado pelo crime, como cúmplice de conspiração. Acabou sabendo literalmente junto com todo mundo pela TV, e isso fez de mim o pior de todos os namorados. Mas ela me perdoou e mora na Rússia comigo. Minha família me apoiou. Confesso que não esperava isso.

    O senhor teme ser reconhecido na rua? Não mais. Em 2013, eu usava chapéu, não me barbeava, tinha medo de jornalistas, de espiões, tinha medo de que me empurrassem de uma ponte. Agora minha vida é bem mais aberta e bem menos interessante. Minha principal atividade é dar palestras sobre a importância da privacidade.

    Qual a probabilidade de esta entrevista estar sendo monitorada? Não dá para saber. Depende do valor que ela possa ter para outras pessoas. Mas posso garantir que estamos usando um sistema seguro ao conversarmos por meio de vídeo.

    Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2019, edição nº 2653

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