A atual paisagem de Caracas surpreende quem tem gravados na cabeça os relatos tenebrosos de pobreza e desnutrição na capital da Venezuela. O trânsito pesado das metrópoles, ausente há anos, retornou às ruas. Cartazes com slogans do tipo “Socialismo ou morte” foram substituídos por outdoors de publicidade. O barulho de motos, em vez de antecipar um assalto a mão armada, virou sinônimo de delivery de comida. Entre os moradores, sobretudo os mais ricos, firma-se a impressão de que a “Venezuela se arregló”, ou seja, está consertada. Nem tanto. Mas, de fato, a situação mudou para melhor. De um lado, a economia acordou e voltou a funcionar. De outro, o ditador bolivariano Nicolás Maduro livrou-se da condição de pária e voltou a ter interlocutores, em parte pelo peso do petróleo venezuelano na crise energética mundial e, em parte, pela ascensão da esquerda na América Latina. Fazendo o L com os dedos, Maduro não escondeu a satisfação com a eleição de Lula no Brasil e com sua declarada intenção de restaurar os laços cortados por Jair Bolsonaro.
Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a Venezuela fecha 2022 com o maior crescimento da região, de 12%, e deve repetir o feito no ano que vem (com a ressalva de que sai de um patamar baixíssimo). O avanço se deu quando o governo, sem abandonar a ideologia linha-dura, cedeu e adotou medidas heterodoxas em 2019 para tirar o país do abismo econômico. Autoridades fiscais e alfandegárias pararam de cobrar vários impostos. Os controles de preços e moedas estrangeiras foram suspensos e o dólar, antes terminantemente proibido, passou a circular livremente, sendo usado em 70% das transações comerciais e injetando oxigênio em setores da economia.
Caracas vive uma explosão de casas noturnas, restaurantes e farmácias. Uma aproximação entre representantes do comércio e o regime, rendido ao pragmatismo, abriu a porta para a compra direta de atacadistas como o Walmart americano, e produtos importados voltaram a forrar as prateleiras dos bodegones. A inflação ainda ronda os 170%, mas é fichinha perto dos 340 000% que já atingiu. A situação permanece instável, baseada mais em arranjos não oficiais do que em leis, mas as iniciativas abriram brechas no modelo chavista de priorizar o setor público sobre o privado.
A fagulha de recuperação doméstica ganhou alento com a invasão da Ucrânia pela Rússia. A crise energética gerada pelas sanções do Ocidente contra o petróleo e gás russos encareceu em 70% as contas de eletricidade nas capitais da União Europeia e respingou nos Estados Unidos. O presidente americano Joe Biden foi pressionado a quebrar o gelo com a Venezuela, dona de imensas reservas, e reavaliar as duras sanções impostas contra a estatal PDVSA em represália aos excessos de Maduro. Em junho, duas petrolíferas europeias receberam permissão para comprar petróleo venezuelano — a primeira aprovação do tipo em dois anos. A Chevron, empresa americana que tem quatro joint ventures inativas com a PDVSA, ganhou licença limitada para retomar o negócio e exportar para Washington novamente. “Esquemas para baixar os preços do combustível podem reduzir o custo político de lidar com um déspota”, aponta Francisco Rodríguez, economista venezuelano e ativista antissanções.
Biden está longe de cumprimentar Maduro com um soquinho, como fez com o sinistro príncipe Mohammad bin Salman da Arábia Saudita (na mesma cruzada por petróleo), e é improvável que o aceite como líder legítimo da Venezuela, mas o clima de aberta hostilidade ficou no passado. Além da necessidade de petróleo barato, os Estados Unidos também estão cientes de que a posição de Maduro mudou na onda esquerdista que tomou conta da América Latina, expressa neste ano nas eleições de Gabriel Boric no Chile, Gustavo Petro na Colômbia e, agora, Lula no Brasil. Até Boric, o mais crítico a Maduro, é contra o isolamento imposto à Venezuela, por agravar a crise humanitária. Já Petro e Lula abraçam calorosamente o retorno do presidente venezuelano ao centro de decisões na região.
Ainda assim, os problemas da Venezuela permanecem graves. Na última década, seu PIB encolheu 70% e cerca de 7 milhões de pessoas, um quarto da população, deixaram o país. A produção de petróleo pela PDVSA neste ano deve ficar, em média, em 650 000 barris por dia, uma fração dos 3 milhões que produzia em 1998, na era pré-chavista. As negociações do regime com a oposição foram retomadas em novembro no México e giram em torno das eleições livres que Estados Unidos e aliados impõem como condição para restabelecer relações com a Venezuela — exigência à qual Maduro reage dizendo que elas só serão possíveis se “todas as sanções” forem removidas. “Nesse cenário, Lula tem a ambição de posicionar o Brasil como mediador”, diz Leandro Lima, analista sênior da Control Risks, consultoria de risco político. Ainda pisando em terreno movediço, o governo da Venezuela tenta de todas as formas aproveitar a conjuntura favorável para sair do buraco em que se meteu.
Publicado em VEJA de 4 de janeiro de 2023, edição nº 2822