Na França, Arnault e Pinault não são só uma rima — são uma intensa rivalidade. Há três décadas que dois bilionários forjados no universo do alto consumo disputam grifes, obras de arte e aquisições com uma voracidade que já se tornou folclórica. De um lado da pista está Bernard Arnault, 72 anos, o homem mais rico da Europa, à frente do grupo LVMH, a maior concentração de marcas caríssimas do mundo (Louis Vuitton, Dior, Givenchy). Do outro, encontra-se François Pinault, 84, dono ele também de um conglomerado de artigos de luxo, o Kering (Gucci, Yves Saint Laurent, Balenciaga). A rixa entre os dois já rendeu muitas rasteiras e puxadas de tapete no mundo dos negócios, mas em pelo menos uma área ela tem favorecido, e muito, o público em geral: a disposição de exibir, em espaços desenhados por mestres da arquitetura, suas vastas coleções de arte.
A mais recente investida nesse sentido partiu de Pinault — no fim de maio, ele inaugurou um espetacular museu de arte contemporânea, o Bourse de Commerce — Pinault Collection, no prédio erguido em 1767 para abrigar a antiga Bolsa de Valores de Paris. Localizado a poucos metros do Louvre, o edifício passou por uma reforma de 200 milhões de euros para expor 10 000 obras de 380 artistas, entre eles o britânico Damien Hirst e a sul-africana Marlene Dumas.
A contenda entre os bilionários franceses remonta aos anos 1990, quando Pinault atropelou uma prolongada negociação de Arnault para adquirir a Gucci e arrematou a marca italiana. Mais recentemente, foi o dono do LVMH que derrotou o Kering na disputa pela Tiffany, a joalheria de Nova York imortalizada por Audrey Hepburn no filme Bonequinha de Luxo. A personalidade oposta dos empresários contribui para atiçar os ânimos. Arnault, fortuna de 190 bilhões de dólares, casado com uma pianista, é tão discreto na vida pessoal quanto agressivo nos negócios. “Sempre gostei de ser o número 1”, declarou em uma entrevista — e foi, por um breve momento há poucas semanas, quando ultrapassou Jeff Bezos, da Amazon, como homem mais rico do mundo (o título não durou nem um dia). Já Pinault, 53 bilhões de dólares, antes de se aposentar convivia muito bem com os holofotes, cercado de celebridades que iam do vocalista do U2, Bono, à atriz Charlize Theron, passando pelo o ex-presidente americano Donald Trump. Seguindo a mesma trilha, seu filho François-Henri, hoje à frente dos negócios, é casado com a atriz mexicana Salma Hayek, a quem costuma acompanhar nos tapetes vermelhos.
Uma das manifestações mais notórias da surda disputa entre os rivais ocorreu um 2019, depois que um incêndio destruiu parte da Catedral de Notre-Dame. Pinault apressou-se em anunciar uma doação de 100 milhões de euros para a restauração, atitude incomum na França, onde o cuidado do patrimônio histórico fica a cargo do governo. “Precisamos reconstruir nossa história”, proclamou. Menos de 24 horas depois, Arnault dobraria a doação, para 200 milhões de euros. “O antagonismo é explícito, com múltiplas provocações e respostas públicas”, confirma Joan Le Goff, professor de gestão da Université Paris-Est Créteil Val de Marne.
O novo museu, de maneira não explícita, entra no mesmo contexto — é uma resposta à Fundação Louis Vuitton, a menina dos olhos de Arnault, um espetacular complexo de onze galerias instalado em uma área de 11 000 metros quadrados no Bois de Boulogne. A obra de 164 milhões de dólares foi projetada pelo canadense Frank Gehry, um dos mais renomados nomes da arquitetura mundial. “Quero compartilhar minha paixão pela arte com o maior número de pessoas possível”, disse o mecenas na inauguração, em 2014. Em vez das linhas modernas do museu de Arnault, Pinault optou por insistir junto à prefeitura até obter autorização para adaptar a histórica Bourse de Commerce, prédio que causa impacto logo na entrada, dominada por uma cúpula de 35 metros recoberta pelo afresco França Triunfal, do século XIX, com cenas do período colonial. Sob a abóbada, o arquiteto japonês Tadao Ando, outro figurão da arquitetura contemporânea, ergueu um cilindro de concreto de 9 metros de altura e 33 metros de diâmetro, espaço destinado à exposição de obras de arte sem interferir no visual do prédio. Para contrapor o passado de opressão desenhado na cúpula, o lugar dá destaque a peças de artistas negros, como os americanos David Hammons e Kerry James Marshall. De museu em museu, de doação em doação, o duelo dos bilionários tem feito muito bem à cultura.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742