Quando o padre Mário da Silva entrou na Faixa de Gaza, logo depois do fim da guerra de 2009, encontrou um povo desesperado entre prédios em ruínas e uma pequena comunidade católica ao redor de um sacerdote idoso e ansioso pela aposentadoria. O paulistano tinha passado seus anos anteriores em trabalho missionário em Mendoza, na Argentina, e nos estudos de teologia e filosofia em Roma. Ao ver pessoas vivendo em tamanha dificuldade e privação, lembra-se ele, sentiu que era “chamado”.
Receber um “chamado” é uma graça com significado especial para os religiosos. Quase sempre, diz respeito ao despertar de uma vocação ou a uma missão que envolve sacrifícios.
“Senti muita pena daquelas pessoas. Até então, eu sabia que elas sofriam injustiças e dificuldades. Mas não as havia visto nem falado com elas”, relatou a VEJA. “A experiência em Gaza mudou minha concepção sacerdotal. Antes, eu estava mais acostumado ao trabalho espiritual e acabei chamado para um intenso trabalho social.”
Ao retornar a Roma, o padre da Congregação do Verbo Encarnado pediu para substituir o pároco da Igreja da Sagrada Família. Como não havia concorrentes para o posto, mudou-se para a casa paroquial em 2012. Tornou-se o único padre católico de Gaza, pastor espiritual de uma comunidade de 2.000 almas na época, quase todas originalmente católicas ortodoxas, e provedor de todo tipo de ajuda a milhares de cristãos muçulmanos.
Nascido e crescido em Santo Amaro, em São Paulo, o padre logo percebeu as necessidades mais frequentes e a falta de oportunidades na vida de qualquer cidadão de Gaza. Ele costuma enumerá-las: energia elétrica disponível por apenas quatro horas ao dia; contaminação de 95% da água disponível; taxa de 47% de desemprego; saneamento básico inexistente; enorme quantidade de mutilados e, por fim, zero liberdade.
“Todos os dias, o ‘trabalho’ de pais de família consiste em mendigar pelas igrejas cristãs, mesquitas, instituições sociais e organismos internacionais. Eles pedem dinheiro, comida, qualquer coisa que sirva para pagarem contas e se alimentarem”, comenta.
Liberdade zero
Em suas diferentes dimensões, a falta de liberdade sensibiliza especialmente o sacerdote, por condenar a população local a sua situação de penúria permanente. Fisicamente, Gaza está cercada por muros e cercas — construídos por Israel e pelo Egito — que impedem a sua população de ultrapassar esses limites. “As pessoas não saem da mesma cidade há mais de dez ou quinze anos. Não podem nem mesmo ir para a Cisjordânia”, constata, referindo-se ao outro território palestino.
Entre Gaza e Ramallah, na Cisjordânia, a distância é de 83 quilômetros. Mas qualquer caminho passaria por território de Israel. Essa prisão os impede de procurar emprego em outros locais. Conforme relatou, a maioria dos empregos disponíveis em Gaza é nos governos do Hamas, que controla a área, e do Fattah, o partido majoritário na Cisjordânia que, aos poucos, conseguiu ingressar no sistema político de Gaza.
“Ainda assim, quem tem emprego público recebe metade do salário a cada cinquenta dias”, acrescenta.
As restrições são mantidas até mesmo em casos de tratamento médico. Padre Mário lembra de uma moça de 22 anos, vítima de leucemia, que não obteve autorização de Israel para tratar-se em um hospital israelense. Há dois anos, ela morreu. As permissões são raras. Os hospitais locais, por maiores que sejam os seus esforços, mais se parecem com açougues, na opinião do sacerdote. “Essa impotência generalizada alimenta o ódio.”
A total falta de liberdade de expressão é outra limitação brutal, ainda mais para um brasileiro que nunca havia experimentado a vida em um local tão cheio de sensibilidades. “Eu não posso opinar”, afirmou, com o cuidado de esquivar-se das perguntas sobre as culpas de Israel e do Hamas pela situação de Gaza. “Tenho muito boa relação com o Hamas, que protege a igreja contra ataques e se mostra amigo dos católicos”, afirma.
Apesar de seu uso obrigatório ter sido abolido desde o Concílio Vaticano II, concluído em 1965, a batina faz parte do vestuário de padre Mário. No Brasil, sua decisão de acolher o conselho dos líderes de sua ordem religiosa e vestir-se como os antigos sacerdotes poderia causar alguma estranheza. Em Gaza, comenta ele, a decisão é bem-vinda: não o diferencia dos demais, acostumados a um traje similar, a túnica.
Ao chegar em Gaza, em 2009, padre Mário falava espanhol, inglês e italiano, além do português, e nenhuma palavra de árabe. Para celebrar as missas diárias, decorou os trechos fixos do missal em árabe e pediu a ajuda de um tradutor do inglês para a língua local nas partes móveis, como a homilia. Durante um ano, tomou aulas de árabe com uma professora. Mas abandonou o curso e se dispôs a aprender “na marra”. Hoje, dá as bênçãos, reza as missas e atende os palestinos no idioma.
“Só Deus sabe quanto foi difícil. Mas, depois de tantos anos fora do Brasil, agora eu enrolo em português”.
Entre ruínas
Sob seu domínio há mais espaços do que a igreja e a casa paroquial. Padre Mário comanda uma estrutura que envolve ginásio de esportes, biblioteca, sala de jogos, três escolas do jardim da infância ao colégio, orfanato, asilo para idosos. Não está sozinho no gerenciamento de toda essa estrutura.
Doze religiosas de três ordens diferentes atuam nas suas áreas de especialização. As do Verbo Encarnado, a mesma ordem do padre, cuidam do trabalho pastoral; as Missionárias da Caridade, fundada por Madre Teresa de Calcutá, atuam especialmente na gestão do orfanato para cinquenta crianças abandonadas e do asilo para quinze idosos.
As Irmãs do Rosário mantêm uma escola e ajudam nas duas outras da paróquia. No total, a Igreja Católica oferece educação para 2.300 crianças e adolescentes em Gaza. A própria paróquia se incumbe ainda de dar abrigo e proteção a mulheres que estariam sujeitas a perseguição e até mesmo à morte, muitas vezes devido a uma gravidez fora do casamento. “Elas são muito pobres, se escondem aqui e, quando dão à luz, geralmente entregam o bebê para o orfanato.”
Do pátio da Igreja da Sagrada Família saem cerca de 600 cestas básicas e suprimento de remédios para 200 famílias por mês para católicos e muçulmanos, sem distinção. De sua sacristia saem projetos mais ambiciosos, como o de implantação de energia solar em 46 casas, o que permite a essas famílias o acesso à eletricidade durante vinte horas por dia.
Um dos programas mais recentes da paróquia é o de geração de postos de trabalho para cinquenta jovens. Mas há também uma iniciativa para aliviar a tensão cotidiana dos adultos e fazê-los rir: as aulas de zumba, que o padre prefere chamar de “aeróbica”.
Os recursos para tocar o dia a dia dessa superestrutura vêm do Patriarcado Latino, a arquidiocese Católica Romana em Jerusalém, do próprio Vaticano e de instituições beneficentes dos Estados Unidos e na Alemanha. Do Brasil, padre Mário nada recebe. “Nunca vi um trabalho pastoral como este aqui de Gaza. Talvez haja algo similar na Síria e no Iraque”, afirma.
Se o trabalho social aumenta a cada ano, a missão espiritual tem abarcado cada vez menos católicos. A comunidade católica totalizava 2.000 fieis em 2012, quando o sacerdote chegou a Gaza para ficar. Há catorze anos, chegara a 4.000. Agora, envolve 1.100. Padre Mário explica que, a cada rara chance que uma família tem de conseguir autorização para sair de Gaza, vai e não volta mais.
O sacerdote não vê discriminação aos católicos da Faixa de Gaza, acostumados a respeitar costumes muçulmanos mesclados aos da cultura palestina. As mulheres cobrem a cabeça, os católicos não comem em público durante o dia na época do Ramadã, período de jejum para os muçulmanos. As procissões saem da igreja sem travas nem reações indignadas. Crianças e jovens das duas religiões vão às mesmas escolas.
Os pesadelos da guerra permanente e da falta de oportunidades instigam a população, em geral, e os católicos, em particular, a escapar de Gaza na primeira oportunidade. A maioria não tem longa história familiar no local.
Guerra e perdão
Durante a Marcha do Retorno, entre abril e junho, a reação das tropas de Israel às manifestações dos palestinos de Gaza trouxe ao padre Mário o temor de uma nova intifada. Os 53 dias de conflito em 2014 deixaram um rastro de destruição ainda visível ao redor de sua paróquia, que acolhera em sua estrutura cerca de 1.400 pessoas durante todo esse tempo. Parte da casa das freiras foi destruída por uma explosão: uma coluna de concreto caiu e arrasou dois quartos, e as janelas foram arrancadas e voaram pelos ares.
A trinta minutos de caminhada da igreja, a cúpula da antiga mesquita Khanilunes continua no chão. Há escombros na mesma rua da paróquia, a 1 quilômetro. “Nas tréguas, nós aproveitávamos para distribuir ajuda e visitar os lugares destruídos porque muitas famílias voltam para lá com a esperança de recuperar seus pertences. As pessoas passavam carregando colchões, botijões de gás, panelas. É muito triste”, relata.
No período das Marchas, em especial nas sextas-feiras, podiam ser ouvidos da paróquia os tiros disparados pelos soldados israelenses contra os manifestantes palestinos e as sirenes das ambulâncias que recolhiam os feridos. O hospital cristão ficou abarrotado, e muitos feridos tiveram de sofrer amputações porque as balas dos fuzis israelenses explodem ao atingir os alvos. Depois, conta o sacerdote, veio o período das pipas incendiárias lançadas de Gaza para Israel, que respondeu com inúmeros bombardeios.
“Eram bombardeios fortes, desproporcionais, que geram um temor espantoso nas pessoas. Os alvos, em geral, são as posições do Hamas. Mas, na semana passada, um prédio ao lado da praça pública foi destruído. Duas crianças e um adulto morreram. Também foi bombardeada a casa de um dos nossos”, lembra.
No último 2 de agosto, Israel impôs sobre Gaza um novo bloqueio no fornecimento de combustíveis, inclusive gás de cozinha, e de medicamentos, o que levou à redução do período diário de funcionamento do hospital para crianças com câncer. Abrandou essa trava treze dias depois. Mas se trata de iniciativa recorrente, notícia má sempre esperada pelos locais.
“Qualquer medida tomada significa a piora do sofrimento.”
Há cerca de um mês, segundo o padre, o Hamas disparou cerca de oitenta foguetes contra Israel, que, como represália, bombardeou Gaza duramente. Muitas pessoas pediram para se refugiar na igreja porque sabiam que um ataque à paróquia viraria um escândalo mundial. Mas não foi preciso. “Foram duas noites de guerra.”
A cada dia, padre Mário é desafiado a seguir com a mensagem cristã de perdão e a convencer católicos e muçulmanos a se manterem impermeáveis às pregações do ódio e unidos diante das injustiças — mesmo diante da falta de perspectivas de um acordo de paz profundo e duradouro.
O quadro político da região é o menos favorável para a negociação de um novo acordo de paz entre israelenses e palestinos. Cada lado se mostra encastelado em suas posições mais defensivas, e não há dos Estados Unidos e das demais potências nenhum sinal em prol do diálogo e da conciliação.
“Não há vontade nem de um lado de outro. O que resta a nós, cristãos, é perdoar, por mais que haja injustiça.”