Cinco razões para esta ser a mais importante eleição da história dos EUA
A pandemia de Covid-19, a recessão econômica e as ameaças de Trump às instituições democráticas tornam o pleito desta terça marcante
A corrida de 2020 para decidir o novo presidente dos Estados Unidos já é considerada por analistas políticos e veículos da imprensa americana como uma das mais importantes da história do país. No ano em que a pandemia de Covid-19 atingiu o mundo, a escolha por um líder que possa comandar a resposta de saúde e gerenciar um plano de recuperação econômica foi percebida pela população como ainda mais vital. Diante das contestações e ameaças do atual presidente Donald Trump de não aceitar o resultado da votação caso Joe Biden seja anunciado como vencedor, os ânimos ficaram ainda mais acirrados.
Soma-se ainda a atual efervescência social que se espalha pelo território americano, com protestos contra o racismo e a violência social, além da erupção de milícias e grupos extremistas da esquerda e direita. Em um país que se torna mais polarizado a cada ano, esta é a receita perfeita para uma eleição de peso.
“O país não enfrenta ao mesmo tempo uma crise econômica e de saúde pública como esta desde a epidemia de gripe espanhola – que também não veio acompanhada da crise política que as eleições de 2020 representam”, diz o analista político e sociólogo da Universidade Columbia, Robert Y. Shapiro.
Antes de 2020, outras disputas entraram para a história, como a corrida de 1800 entre Thomas Jefferson e Aaron Burr. A votação terminou com um empate, com placar de 73 a 73 no Colégio Eleitoral. Depois de uma semana e 36 votações, Jefferson saiu vitorioso da Câmara dos Representantes por 10 a 4 —e Burr acabaria se tornando o vice-presidente do seu governo.
Cerca de 60 anos depois, em 1860, outra batalha importante foi travada entre Abraham Lincoln e Stephen Douglas. A nação tinha sido dividida ao longo da última década sobre as questões em torno da expansão da escravidão e os direitos dos proprietários de escravos, que no ano seguinte levaram ao início da Guerra de Secessão travado entre os estados do sul e do norte do país. Lincoln foi eleito com grande apoio da região nortenha, mas sua vitória enfureceu os escravagistas do sul que logo pediram sua independência.
Já em 1932 a disputa entre Franklin D. Roosevelt e o então incumbente Herbert Hoover também entrou para a história. A eleição aconteceu em meio à Grande Depressão e a escolha por um novo presidente era considerada vital para a recuperação americana. Hoover, por não encontrar medidas práticas para conter a crise, não agradou. Isso deu oportunidade para Roosevelt vencer disparado.
Desta vez, porém, existe um consenso entre historiadores, cientistas políticos, diplomatas e funcionários públicos de que a eleição entre o presidente Donald Trump e o democrata Joe Biden possa alcançar, ou até superar, esses altos padrões históricos. As principais razões para isso são as seguintes.
Pandemia de Covid-19
Os Estados Unidos se mantém há meses como o país com mais casos e mortes causadas pelo novo coronavírus. No sábado 31, a nação atingiu o recorde mundial de novos testes positivos em 24 horas, com 100.000 casos.
Nos últimos oito meses, o presidente Donald Trump alternou sua percepção sobre o tema diversas vezes e entrou em disputa com governadores, médicos e outros líderes mundiais ao defender suas ideias sobre a doença e como contê-la. O republicano chegou a menosprezar a gravidade do vírus no início e advogou ainda em maio pelo fim do lockdown em regiões do país em que os casos diários pareciam diminuir.
Entre tantas idas e vindas, a aprovação da gestão de Trump caiu drasticamente desde o início do ano. Em outubro, o índice chegou a seu recorde de baixa, com apenas 37% dos americanos a favor da condução da reposta à crise.
Diante de tantas dúvidas ainda não respondidas sobre o vírus, um ressurgimento no número de casos no país nas últimas semanas e a perspectiva de resultados promissores das vacinas testadas em todo o mundo, a Covid-19 definitivamente será um dos principais desafios do próximo presidente americano.
“Lidar com a pandemia é de importância central neste momento e o país precisa selecionar um presidente que saiba enfrentar bem os desafios”, diz Robert Shapiro.
Recessão econômica
Em meio à crise sanitária, a economia dos Estados Unidos sofreu uma contração recorde de 32,9% no segundo trimestre de 2020. Foi a maior contração desde a Grande Depressão, no início do século passado. A queda também representa mais do triplo do recuo de 10% registrado no segundo trimestre de 1958 – a maior queda já vista desde então.
Em um esforço para conter o vírus, a população foi confinada, escolas e negócios não essenciais fecharam as portas. As viagens aéreas foram drasticamente reduzidas. Além da contração do PIB, o resultado foram taxas preocupantes de desemprego.
Em abril, o índice atingiu seu recorde histórico de 14,7%. Os números passaram de mínimos a máximos em menos de um ano, já que o governo Trump gozava até o início da pandemia de resultados positivos na queda do desemprego.
Desde maio, o índice começou a diminuir e atingiu 7,9% ao final de setembro. O PIB também saltou 33,1 no terceiro trimestre, após a queda histórica dos meses anteriores. Porém, ainda que a economia venha se recuperando à medida que as atividades são retomadas, a crise ainda torna o cenário atual bastante complexo e desafiador.
Ameaça às instituições democráticas
Há ainda um risco significativo de os Estados Unidos passarem por uma crise de legitimidade após as eleições presidenciais de novembro, o que seria uma ameaça inédita à democracia do país. Trump está constantemente levantando dúvidas sobre a legitimidade das eleições e o voto pelo correio.
O republicano disse ainda que deve entrar na Justiça caso Biden seja declarado vencedor e insinuou que pode não aceitar o resultado do pleito. Os temores de uma crise política motivada pela eleição tornam o momento ainda mais importante para a história americana.
O comportamento recente de Trump e suas ameaças à democracia americana tornaram essa eleições mais importante do que outras”, avalia Robert Shapiro. “Eleições livres e justas e uma transição pacífica para o novo mandato são essenciais neste momento”.
Agitação social
A eleição de Trump em 2016 ampliou ainda mais a polarização política deste país que segue um sistema bipartidário. O cenário abriu as portas para o crescimento de grupos e organizações extremistas que visam defender suas crenças políticas a todo custo.
Estima-se que haja hoje cerca de 15.000 a 20.000 milicianos ativos em mais de 300 grupos espalhados pelo território americano. Segundo o diretor do FBI, Christopher Wray, as ideologias e organizações antiautoritárias, que pregam contra o governo usando da violência, representam atualmente o maior perigo enfrentado pelo país.
O sentimento de agitação social se tornou ainda mais vívido em maio deste ano, quando milhares de americanos saíram às ruas de todo o país para protestar contra a violência policial e o racismo. As manifestações tiveram como ponto de partida a morte do afro-americano George Floyd durante uma abordagem policial em Minnesota.
Durante os protestos, grupos mais radicais se tornaram violentos e destruíram propriedades e bens públicos. Algumas organizações também entraram em conflito, deixando mortos e feridos.
Desde então, o tema da justiça racial, dos protestos e da violência policial se tornou central para as eleições. A discussão esquentou ainda mais com a recusa de Donald Trump em condenar publicamente os movimentos nacionalistas brancos que atuam ao lado das milícias no país em sua participação no primeiro debate eleitoral.
Geopolítica mundial
Em 2020, os Estados Unidos ocupam uma lugar muito mais central na política mundial do que durante as eleições de 1800, 1860 ou até mesmo 1932. O país atua em diversas frentes como mediador de conflitos, é um importante ator diplomático e contribui mais do que outras nações para a estabilidade internacional.
Para especialistas, as eleições desta terça também decidirão sobre o papel americano na geopolítica mundial. Com Trump, os Estados Unidos iniciaram um movimento de isolamento que desafiou a ordem vigente desde a Segunda Guerra Mundial e influenciou outras nações, como o Brasil.
O republicano retirou os Estados Unidos de tratados internacionais, como o Acordo Transpacífico, e rompeu a parceria de seu país com a Organização Mundial da Saúde (OMS) durante a pandemia de coronavírus. No Oriente Médio, adota uma postura de amplo apoio a Israel nos conflitos locais e promete retirar as tropas americanas do Iraque e Afeganistão, assim como fez na Síria.
Uma continuidade de seu governo significará um aprofundamento ainda maior dessa tendência. Já a vitória de Joe Biden pode iniciar um lento retorno aos padrões de quatro anos atrás.