Considerada até então a mais estável democracia da América do Sul, o Chile acordou em choque na manhã de 11 de setembro de 1973. Sob a liderança do general Augusto Pinochet, as Forças Armadas cercaram a capital, Santiago, enquanto caças despejavam bombas sobre o Palácio de La Moneda, sede do Executivo. Dentro dele, o presidente Salvador Allende ensaiou uma desesperada e inútil resistência, que terminaria naquele mesmo dia com o seu dramático suicídio. Chegava ao fim o primeiro governo socialista eleito democraticamente na América Latina e tinha início a longa e implacável ditadura que adicionou o Chile ao vasto clube de países dominados por regimes militares na região. Nos dezessete anos que se seguiram, Pinochet governou com mão de ferro, combinando tortura e repressão política com uma radical liberalização da economia. Passado meio século, os tremores do golpe ainda se fazem sentir, acentuados pelos ventos direitistas que sopram no planeta.
Para marcar a data, o presidente de esquerda Gabriel Boric, de apenas 37 anos, admirador de Allende que chegou ao cargo em 2021 em disputa apertada com o conservador José Antonio Kast, propagador da herança pinochetista, assinou o decreto de criação do Plano Nacional de Busca de Vítimas. O projeto é destinar recursos e incentivos para encontrar os desaparecidos na era Pinochet. Segundo estimativas oficiais, entre 1973 e 1990 cerca de 30 000 pessoas foram alvo dos crimes da ditadura chilena. Destas, 1 469 sumiram nas mãos dos militares e os restos de apenas 307 foram encontrados e identificados. “Este plano não é um favor às famílias”, afirmou Boric na assinatura do decreto. “É um dever da sociedade como um todo dar as respostas que o país merece e precisa.” Para marcar o 11 de setembro, o governo organizou um abraço coletivo em torno do La Moneda e um ato no Estádio Nacional, central de prisões e torturas após o golpe.
A sombra de Pinochet paira sobre o governo de Boric, malvisto pela parcela da população que teme mudanças radicais e expressa nostalgia pelos velhos tempos. Uma sondagem recente mostrou que apenas 42% dos chilenos acham que o golpe militar destruiu a democracia. Outros 36% responderam que Pinochet salvou o Chile de se tornar uma nação comunista, a mais elevada aprovação da ditadura em décadas. “Países que sofrem com regimes violentos e terrorismo de Estado têm cicatrizes profundas, que levam décadas para curar”, diz David Aceituno, professor de história da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso.
Eleito em 1970, Salvador Allende prometeu construir um “caminho chileno para o socialismo”. Com esse propósito, pôs em marcha uma onda de nacionalizações de empresas de mineração, base da economia chilena, e expandiu a presença do Estado, multiplicando os empregos no setor público. Com o inchaço da máquina estatal e a insegurança econômica, a inflação anual bateu em 600% e o país mergulhou em uma sequência caótica de paralisações e racionamentos. Alarmado com a possibilidade de Allende se tornar um novo Fidel Castro, o presidente americano Richard Nixon bloqueou empréstimos e a CIA financiou secretamente movimentos grevistas de caminhoneiros e comerciantes. Neste contexto, parte da classe média e das lideranças empresariais não só aderiu ao golpe como apoiou as reformas impostas por Pinochet. O general morreu em 2006, com a democracia já restaurada. Mas sua marca continua lá e todo o cuidado é pouco.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858