Foi um ato, antes de tudo, simbólico: os chilenos aprovaram com quase 80% dos votos o processo que vai, depois de muita gritaria, jogar no lixo a Constituição escrita na ditadura de Augusto Pinochet, em 1980, para pôr outra no lugar. Parte do que ela dispunha já tinha sido revista e alterada em três décadas seguidas de regime democrático. Mas, quando a população tomou as ruas ao longo do último ano e meio para exigir menos desigualdade social e uma reforma política, a Carta de Pinochet, que cimentou entre outras coisas uma rígida e imperfeita política econômica neoliberal, virou para os insurgentes sinônimo de tudo o que precisa mudar no Chile. Assumir o compromisso de realizar o plebiscito foi o recurso mais drástico do governo para tentar acalmar os ânimos. Seu resultado, um sublime gosto de vitória para os manifestantes que encheram as praças de Santiago com fogos e bandeiras, onde faixas proclamavam, referindo-se ao ex-ditador: “Apagar o seu legado será o nosso legado”. O governo do presidente Sebastián Piñera já havia anunciado um plano econômico que prevê aumento das pensões para idosos e uma repaginação do sistema de saúde. Às vésperas do plebiscito, em outro gesto, convocou as lideranças políticas para discutir as reivindicações populares. O caminho das mudanças ainda é longo. Em abril de 2021, os chilenos vão eleger uma Assembleia Constituinte, que terá cerca de um ano para montar a nova Carta e levá-la a outro plebiscito. Antes, em novembro, voltarão às urnas para eleger o presidente e quase todo o Congresso. Mas o primeiro passo foi dado. E vastamente comemorado.
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711