Carta ao Leitor: Apetite pelo poder
Uma eventual vitória de Trump mexerá as placas tectônicas, sem limite de fronteiras. Na economia e na política, mas também no aspecto comportamental
Uma única vez, na história dos Estados Unidos, um presidente derrotado ao tentar a reeleição voltou a candidatar-se e conseguiu retornar ao Salão Oval da Casa Branca. Foi o democrata Grover Cleveland, eleito pela primeira vez em 1884, mas que quatro anos depois seria vencido pelo republicano Benjamin Harrison. Em 1892, contudo, ele bateria Harrison para retomar o cargo que havia perdido. Donald Trump, de incalculável apetite pelo poder, sonha reescrever esse capítulo inusual da vigorosa democracia americana. Na semana passada, ele venceu sua oponente, Nikki Haley, nas primárias da Carolina do Sul, estado que já foi governado por ela. No próximo dia 5 de março, na chamada “Super Terça”, eles voltarão a se enfrentar em quinze estados — tudo indica que Trump vai atropelar Haley, a não ser que um cometa colida com a Terra. Feito candidato do Partido Republicano para as eleições de novembro, muito provavelmente ele enfrentará o atual presidente, Joe Biden, que caminha também rapidamente para confirmar sua candidatura.
A média das pesquisas de opinião pública põe Trump, de 77 anos, à frente de Biden, de 81, com margem estreitíssima — 43% a 42%. Muita água ainda há de rolar nos próximos oito meses, mas uma indagação parece inevitável: e se ele voltar? Teme-se que, em novo mandato — caso escape das decisões da Justiça que podem barrá-lo —, Trump possa dobrar a aposta de sua primeira temporada no poder, jogando gasolina no incêndio. Em alguns dos temas mais sensíveis da atualidade, como a invasão da Ucrânia pela Rússia, a guerra entre Israel e Hamas e a expansão da China — além das relações diplomáticas e comerciais com o Brasil de Lula —, ele seria personagem decisivo. Pela função que pode vir a exercer, é evidente, mas por ser quem é, avesso a negociações, dado a radicalismos e de permanente enfrentamento ao estado de direito e ao bom senso.
A pergunta que não quer calar: sua reeleição representaria uma nova página raivosa dos ataques contra o Capitólio, alimentada pelo burburinho ruidoso e daninho das redes sociais, ou seria uma versão mais light? Não se sabe, é natural — mas, se a medida do futuro é o que ele deixou para trás, o temor global é compreensível. De qualquer modo — para o bem ou para o mal —, Trump II mexerá as placas tectônicas, sem limite de fronteiras. Na economia e na política, sem dúvida, mas também no aspecto comportamental, decorrente de sua atávica aversão aos direitos das minorias e à diversidade. Convém ficar atento aos próximos passos, e não seria errado dizer que a partir da próxima semana o mundo entrará em nova fase, em um filme de suspense com cenas muito impactantes.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882