A queda de Evo Morales da Presidência da Bolívia não chega a ser uma anomalia no país, que, em 194 anos de independência, teve 85 presidentes (média de um a cada dois anos e três meses), dezessete Constituições e reviravoltas de toda espécie. Mais surpreendentes são os treze anos em que Morales permaneceu no poder. No entanto, foi justamente o apego excessivo do primeiro mandatário de ascendência indígena ao cargo que desencadeou a convulsão social que faz a Bolívia tremer. Com La Paz tomada de manifestantes pró e contra o governo, ruas bloqueadas, casas incendiadas e políticos humilhados publicamente, Morales foi à TV para anunciar sua renúncia no domingo 10. Não acalmou o tumulto. No dia seguinte, encurralado em um reduto de apoiadores, pediu e obteve asilo no México, para onde partiu às pressas. Renunciaram com ele o vice e os líderes das duas Casas do Congresso. O país passou 48 horas sem comando até que a segunda vice-presidente do Senado, a oposicionista Jeanine Áñez, vestisse a faixa presidencial e se declarasse chefe do Executivo. “A Bíblia está de volta ao palácio”, proclamou, prometendo convocar novas eleições.
Advogada de 52 anos, ex-apresentadora de TV em uma cidade do interior, Jeanine é política de pouca expressão e sem base de apoiadores. Ninguém arrisca dizer se ela permanecerá na Presidência e, se isso não acontecer, quem ocupará o cargo. As instituições bolivianas implodiram de vez (veja a coluna de Roberto Pompeu de Toledo) em 20 de outubro, quando um Tribunal Superior Eleitoral (TSE) composto de juízes escolhidos a dedo por Morales suspendeu a transmissão da contagem dos votos da eleição que o levaria ao quarto mandato, com 83% das urnas apuradas indicando um segundo turno. No dia seguinte, o sistema voltou ao ar com 95% dos votos computados e — surpresa — deu Morales na cabeça. A parcela da população que sempre se opôs à ascensão do ex-líder dos cocaleros (colhedores de folhas de coca) transformado em expoente da esquerda, engordada pelos bolivianos que simplesmente estavam fartos de suas manobras para se eternizar no poder, tomou as ruas da capital. A cúpula da polícia anunciou que não reprimiria os manifestantes. O comandante das Forças Armadas, general Williams Kaliman, que sempre foi próximo de Morales, apareceu cercado de militares fardados e pediu ao presidente que renunciasse para acalmar a nação. Decretou-se ali o fim do governo.
Foi golpe ou não foi? “Criou-se na Bolívia uma situação ambígua. Evo Morales, mais de uma vez, violou as regras do jogo, mas os militares produziram uma ruptura institucional”, diz Oliver Stuenkel, cientista político da Fundação Getulio Vargas. A presença de militares no desenrolar do caos boliviano reprisou outros episódios recentes de protagonismo das Forças Armadas em momentos de crise provocada por manifestações populares em grande escala na região. Em outubro, em um Equador paralisado por protestos contra um aumento do preço dos combustíveis, o presidente Lenín Moreno foi à TV para decretar emergência nacional cercado de generais. A cena se repetiu no Chile, quando Sebastián Piñera ordenou toque de recolher para conter a revolta causada pela alta da tarifa do transporte público (leia mais). Nos dois casos, tropas foram despachadas para restabelecer a ordem. Segundo a pesquisadora Rut Diamint, da Universidade Torcuato Di Tella, de Buenos Aires, isso não significa que os militares queiram derrubar governos e tomar o poder — um ritual que perdurou por décadas na América Latina —, mas mostra a debilidade dos poderes constituídos depois da falência dos partidos tradicionais. “Em vez de fortalecerem as instituições, os presidentes recorrem ao Exército em situações de crise”, diz.
Contrariando expectativas, Morales fez um governo que, a certa altura, era citado como um caso de sucesso na região. Faz dez anos que a Bolívia, um dos países mais pobres da América Latina, cresce a um ritmo de 5% ao ano. A população abaixo da linha de pobreza diminuiu de 63% para 35%. O presidente combinou programas de esquerda, como a nacionalização de setores de produção de gás (o principal produto de exportação) e medidas de transferência de renda, com a abertura da economia a investidores estrangeiros. Mas, em contraste com o avanço econômico, a democracia liberal entrou em declínio na Bolívia. Vaidoso e controlador, Morales exercia poder absoluto sobre seu partido, o Movimento para o Socialismo (MAS), e barrou a ascensão de possíveis sucessores. No primeiro mandato, fez aprovar uma lei impedindo uma terceira reeleição do presidente, mas conseguiu que ela só valesse a partir da votação seguinte, que ele venceu. Reelegeu-se mais uma vez e, quando não poderia mais se candidatar, convocou um referendo em 2016 para acabar com o limite de mandatos.
Perdeu, mas não se conformou. Levou o caso à Corte Suprema, que controlava, e conseguiu um bizarro veredicto a seu favor: impedi-lo de se candidatar mais uma vez iria contra o direito individual das pessoas. Disputou a Presidência pela quarta vez em outubro, tentou dar um jeitinho no resultado e acabou tendo de sair corrido do país. Venezuela, Uruguai e Rússia condenaram o enredo que levou à renúncia de Morales. Brasil, Colômbia, Argentina e Estados Unidos aplaudiram e reconheceram Jeanine Áñez como presidente. Do México, Evo Morales continua a dizer que foi vítima de um “golpe cívico militar policial”. Quem conhece o intrincado jogo de poder em La Paz não descarta um retorno triunfal. No realismo fantástico que rege a política boliviana, qualquer desfecho é possível.
Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661