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Biden tem desafio de desmontar os problemas acumulados pelo governo Trump

O presidente tomou posse sem tumulto e com gestos de conciliação, mas agora é que começa o trabalho duro

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 14h14 - Publicado em 22 jan 2021, 06h00
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  • Nevava ligeiramente quando as trombetas soaram, as portas do Congresso se abriram e Joseph Biden, 78 anos, de mãos dadas com a mulher, Jill, desceu as escadas até o palanque montado na frente do Capitólio. Foi recebido pelas poucas pessoas autorizadas, devidamente distanciadas e mascaradas (um funcionário higienizava a estante de leitura após cada discurso). À sua frente, no National Mall, a esplanada que liga a sede do Legislativo ao Lincoln Memorial, 200 000 bandeiras americanas ocupavam o lugar do público, vetado por motivo de segurança. Ao lado sentava-se Kamala Harris, 56 anos, filha de mãe indiana e pai jamaicano, primeira mulher a ser eleita vice-presidente. Nem sinal de Donald Trump, ausência inédita em trocas de presidente nos últimos 152 anos. Foi assim, cheia de novidades impostas pelas circunstâncias, a cerimônia na quarta-feira 20 que fez de Biden o 46º presidente dos Estados Unidos.

    Paciente com Covid-19 internado.
    EM ALTA - Internações por Covid-19, o maior desafio de Biden: número de mortes bate recordes e a imunização é falha – (Ariana Drehsler/AFP)

    No mesmo local onde, catorze dias antes, um bando de radicais quebrara portas e janelas e invadira os salões do Capitólio, Biden fez seu primeiro discurso no cargo. “A política não precisa ser um incêndio que destrói tudo por onde passa. Nem toda discordância é motivo de guerra total”, declarou, conciliador. No meio da tarde, o sol brilhava quando as famílias de Biden e Kamala, separadamente, caminharam os 200 metros do trecho final entre o Congresso e a Casa Branca, acenando para o escasso público — na maioria jornalistas e familiares de funcionários com passe livre nos prédios públicos. A presença de 20 000 integrantes da Guarda Nacional e da polícia de Washington em peso desestimulou tumultos e a posse transcorreu sem incidentes. Tão logo chegou ao Salão Oval, Biden pegou a caneta e deu início ao desmonte rápido e fulminante de pilares do trumpismo, assinando dezessete ordens executivas.

    Entre outras medidas, o novo presidente recolocou os Estados Unidos no Acordo de Paris, que estabelece metas de redução do aquecimento global desdenhadas por Trump, e na Organização Mundial da Saúde, de onde o país saíra acusando a direção de excesso de ingerência da China. Outra assinatura de Biden tornou obrigatório o uso de máscaras em edifícios federais, o alcance máximo de sua autoridade. Ele também revogou o estado de emergência na fronteira com o México, efetivamente encerrando o financiamento do muro que virou maníaca obsessão de seu antecessor, e reabriu a entrada de visitantes de países muçulmanos. Não será, porém, com ordens executivas que Biden conseguirá transpor os imensos problemas. “Há crises em várias frentes, que precisam ser encaradas de imediato”, diz Michael Burger, especialista em direito ambiental da Universidade de Columbia, em Nova York.

    REPRISE - Caravana a caminho da fronteira: imigrantes de novo em marcha -
    REPRISE - Caravana a caminho da fronteira: imigrantes de novo em marcha – (Esteban Biba/EFE)

    Nenhum desafio é tão premente quanto o controle da pandemia, que está matando 4 000 pessoas por dia — as vítimas passavam de 400 000 um dia antes da posse. Uma equipe do governo federal assumirá a distribuição de vacinas, que está a cargo de autoridades locais e tem sido falha e insuficiente: só 12 milhões foram imunizados até agora. Em Nova York, o prefeito Bill de Blasio disse que as doses estão prestes a acabar. Na Flórida, há denúncias de que milionários têm furado a fila, enquanto idosos de baixa renda passam a noite na rua para conseguir atendimento. “É preciso imunizar a população o mais rápido possível. Com a epidemia fora de controle, aumenta o risco de surgirem novas cepas”, alerta Marc Lipsitch, epidemiologista de Harvard. O governo planeja espalhar postos em estádios, escolas, academias e até na Disneylândia, em Los Angeles, e tem como meta imunizar 100 milhões de americanos nos primeiros cem dias.

    No mesmo prazo, a nova administração pretende implementar um pacote de incentivos à economia com investimentos da ordem de 1,9 trilhão de dólares, metade destinada diretamente a famílias afetadas pela pandemia, que receberão cheques de 1 400 dólares. Aprovar o pacote não será um passeio, dado que os republicanos e até uma ala dos democratas não veem com bons olhos tamanha injeção de recursos sem contrapartida garantida e a maioria de Biden no Senado é de um único voto. O presidente anunciou ainda projetos de lei para regularizar a situação de 11 milhões de imigrantes ilegais, em vez de se empenhar em expulsar a maioria. Essa visão humanitária da situação vai topar, mais dia, menos dia, com a repetição de um problema conhecido: milhares de centro-­americanos marcham na direção da fronteira com o México, confiando que sua entrada nos Estados Unidos estará facilitada na nova administração (Biden já anunciou que não vai derrubar imediatamente as barreiras em vigor).

    Outro possível obstáculo ao bom andamento de seus projetos é o julgamento do segundo pedido de impeachment de Trump, que o Senado deve receber a qualquer momento e pode tomar conta de sua agenda em um período crucial para um governo que está começando. Estuda-se a possibilidade de dividir formalmente a sessão legislativa ao meio: metade do dia se discute impeachment, na outra metade se trata dos assuntos do governo. No pano de fundo do governo Biden, continua a assombrar o fantasma dos apoiadores de Trump, convencidos de que a eleição foi fraudada e decepcionados com a troca de comando. Horas antes da posse, Trump e a mulher, Melania, entraram em um helicóptero, seguiram para a Base Aérea de Andrews e de lá, pela última vez, embarcaram no Air Force One, em direção a Mar-a-Lago, o resort que a família possui na Flórida — liberando a Casa Branca para os novos ocupantes, depois de passar por uma higienização geral, já que os moradores anteriores não ligavam muito para os protocolos de saúde. “De algum jeito, voltaremos”, disse Trump antes de embarcar. Biden precisa agora achar o seu jeito de fazer a jogada certa e consertar o país. A turma do contra pode ser barulhenta, mas a torcida a favor é enorme.

    Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722

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