Nos corredores e salões do Capitólio em Washington, de onde deputados e senadores tinham saído correndo minutos antes em busca de esconderijos seguros, um homem tatuado e pintado, pele de animal sobre os ombros nus e adereço de chifres na cabeça, com pinta de cantor do lendário Village People, circulava aos gritos, batendo no peito e brandindo sua lança (na verdade, um mastro de bandeira). No inimaginável dia 6 de janeiro de 2021, o Congresso dos Estados Unidos, país que se proclama, orgulhoso, o farol do mundo livre, havia sido invadido por uma turba, e aquela figura meio selvagem, meio ridícula virou símbolo de um momento de limites rompidos na democracia americana. Jacob Chansley, 34 anos, ex-ator e ex-marinheiro, foi um dos primeiros a invadir o prédio, onde a vitória de Joe Biden na eleição presidencial estava sendo sacramentada. Posteriormente diria estar atendendo ao chamado de Donald Trump — em um comício perto dali, cercado de apoiadores, o ex-presidente batera com vigor na sua tecla preferencial, a fantasia de que a eleição da qual saiu derrotado tinha sido fraudada. No apagar das luzes do mandato trumpista, o Poder Legislativo virou refém dos radicais.
Depois de circular livremente por gabinetes e plenários — no pódio da presidência do Senado, Chansley escreveu: “É só questão de tempo. A justiça está chegando” —, o bando foi contido pela polícia, que usou gás lacrimogênio para dispersá-lo. Cinco pessoas morreram. No movimento pró-Trump, ainda vigoroso e capaz de manter o país rachado ao meio, a invasão do Congresso virou senha para manifestações de força e ameaças dentro e fora das redes sociais — de onde Trump, o próprio, foi excluído. Identificados em vídeos de câmeras de segurança e nas redes sociais, centenas de invasores foram chamados a depor e vários acabaram presos, entre eles Chansley. Na cadeia, ele se desiludiu de Trump, de quem esperava rápido perdão. Em longo e embaralhado depoimento no fim de seu julgamento, em novembro, citou Jesus e Gandhi, falou de suas tatuagens, se disse arrependido, pediu desculpas e revelou que, quando se olha no espelho, diz: “Você fez uma enorme idiotice”. Está cumprindo pena de três anos e meio de prisão.
Publicado em VEJA de 29 de dezembro de 2021, edição nº 2770