Depois de 47 dias de guerra, desencadeada por ataques terroristas que deixaram 1 200 mortos em Israel e agravada por bombardeios ininterruptos e operações terrestres que vêm dando à Faixa de Gaza contornos de terra arrasada, o Hamas e o governo israelense cederam a pressões vindas de todos os lados e anunciaram um acordo de cessar-fogo temporário. A cláusula principal do documento é a libertação de cinquenta mulheres e crianças, parte dos 246 reféns capturados pelo grupo palestino no decorrer do massacre de 7 de outubro. Em troca, Israel se compromete a soltar cerca de 150 palestinos (três para cada cativo liberado), também em sua maioria mulheres e menores de idade, presos sob acusação de terrorismo. Prevista para durar de quatro a cinco dias, a pausa nos combates pode se estender, se mais reféns forem devolvidos às suas famílias, mergulhadas em dolorosa espera — ou ser suspensa, imediatamente, à menor faísca de suspeição no campo minado das desconfianças mútuas.
Horas após o anúncio do cessar-fogo e da troca de reféns, ambos previstos para começar na quinta-feira, 23, Israel informou que o início da ação seria no dia seguinte, na melhor das hipóteses. No meio tempo, o comando militar israelense comunicou que “continua a lutar em Gaza” e o Hamas esclareceu que concordara com a trégua, “mas nosso dedo continua no gatilho”, acentuando o clima de esperança misturada à incerteza na população dos dois lados. As tratativas entre Israel e Hamas para se chegar ao acordo duraram mais de três semanas e demandaram uma maratona diplomática iniciada pelo Catar, interlocutor privilegiado do Hamas, impulsionada por Estados Unidos, fazendo pressão sobre o aliado Israel, e apoiada pelo Egito, dono do único portão de saída de civis de Gaza e entrada de suprimentos. Além da trégua nas hostilidades, que pode ser ampliada sempre que dez novos reféns sejam libertados, o acordo prevê o acesso de médicos da Cruz Vermelha aos cativeiros e a entrada diária de 300 caminhões de ajuda humanitária. Até aqui, além das vítimas em Israel, a guerra matou 14 000 palestinos, metade crianças (segundo o Hamas).
Outro fator de influência na obtenção do acordo foi a mobilização da sociedade israelense, que foi às ruas exigir uma solução para a questão dos reféns — no sábado, 18, mais de 50 000 pessoas se reuniram em Tel Aviv e Jerusalém, cobrando respostas do governo. Desde o início da guerra, a estratégia do gabinete de emergência montado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de dar prioridade total à eliminação do Hamas foi alvo de críticas de civis e até militares, pelos riscos que embute de alvejar sequestrados no fogo cruzado.
Até agora, porém, Netanyahu evitava entrar em choque com a linha-dura que sustenta seu instável governo de coalizão. “É um desastre o que está acontecendo”, criticou o radical ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, do ultradireitista Partido do Poder Judeu, opositor do acordo, antes da votação do gabinete que optou pela trégua. “Se Netanyahu diz que venceremos unidos, isso inclui trazer os reféns de volta em segurança”, contrapõe Ramos Aloni, cujas filhas Danielle e Sharon estão presas em Gaza, um dos vários sofridos relatos ouvidos por VEJA (leia outros depoimentos ao longo desta reportagem). Apenas quatro dos capturados foram libertados pelo Hamas e uma soldada, Ori Megidish, resgatada por Israel. Outros dois foram mortos e seus corpos recuperados em uma ofensiva terrestre, trágico desfecho que alimenta o medo entre os que aguardam por notícias.
Na reorganização das forças no Oriente Médio promovida pela guerra, ficam evidentes, de um lado, a turbulenta situação de Netanyahu, refém ele próprio de partidos religiosos radicais e altamente impopular, e, de outro, a relevância adquirida pelo Catar no meio de campo da mediação. Empenhado em se sobressair e ampliar sua área de influência nessa esquina conturbada do globo — ambição que o levou a ser sede da Copa do Mundo de 2022 —, o país hospeda uma representação do Hamas e dá guarida a sua cúpula política, além de sustentar financeiramente o poder público em Gaza — o que lhe deu cacife para negociar concessões junto aos palestinos. “Os cataris iniciaram sua empreitada diplomática há duas décadas, intermediando acordos no Iêmen, em 2007, e no Líbano, no ano seguinte”, diz Bader Al-Saif, especialista em história islâmica do Carnegie Middle East Center, de Beirute.
A negociação de agora envolveu diplomatas de Estados Unidos, França, Holanda e Egito. “Nosso foco é garantir que Israel e o Hamas cumpram os termos acertados”, afirmou Majed Al-Ansari, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores catari. Até o Irã, inimigo número 1 de Israel e maior fornecedor militar do Hamas, sentou-se à mesa de debates. Sua atuação envolveu o destino de onze trabalhadores rurais tailandeses presos em Gaza — o governo de Bangcoc percebeu que eles não estavam recebendo atenção e apelaram para o regime dos aiatolás, que viu na missão uma chance de melhorar a imagem.
Ainda que se concretize e represente de fato um alívio depois de seis semanas sangrentas, a suspensão da guerra não desata a crise que se abate sobre a região. “O comando israelense teme que o Hamas use o período para se reorganizar e promover novos ataques contra Israel”, disse a VEJA Moty Cristal, ex-chefe do Centro de Gestão de Negociações, órgão ligado ao gabinete de Netanyahu. Moty também ressalta que a trégua deve intensificar a pressão internacional pelo fim da guerra, o que contraria os planos do primeiro-ministro de só terminar a operação quando extinguir o Hamas, meta quase impossível. “Em uma guerra, os canais de negociação são muito instáveis”, diz Moty. No mesmo dia do anúncio do cessar-fogo, os israelenses rebateram ataques do grupo xiita Hezbollah, no Líbano, com a morte de quatro supostos terroristas e dois repórteres. A suspensão do bombardeio em Gaza é o primeiro passo, mas as gestões diplomáticas ainda têm um longo caminho pela frente. Até lá continuará o drama.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869