“Perón, Perón, grande dirigente, és o primeiro trabalhador.” O hino que celebra o populista Juan Domingo Perón, ditador e presidente eleito que definiu o rumo da Argentina no século XX, reverberou pelo plenário do Congresso assim que Alberto Fernández e Cristina Kirchner tomaram posse, como presidente e vice, na terça-feira 10. Era a volta do ideário justicialista à Casa Rosada, quatro anos depois de ter sido escorraçado por Mauricio Macri, milionário que prometeu uma virada liberal para salvar o país da bancarrota, não conseguiu e agora sai afugentado pelo fracasso. Como boa peronista, a dupla Fernández-Kirchner promete um plano de combate à fome, medidas emergenciais para estimular emprego e renda, melhora do sistema de saúde e, acima de tudo, o enterro da política liberal do antecessor. “Vamos colocar a Argentina de pé novamente”, bradou Fernández. Vai precisar de bem mais que palavras para alcançar o milagre.
Em outro ponto do discurso, ele falou do Brasil — o único país citado pelo nome. Defendeu uma agenda bilateral ambiciosa e inovadora, “que vá além das diferenças pessoais entre os que governam neste momento”, um claro sinal de paz dirigido a Jair Bolsonaro, o vizinho malcriado que, de tão inconformado com a volta dos “bandidos da esquerda”, declarou que os argentinos “escolheram mal”, negou-se a cumprimentar Fernández pela vitória e ameaçou retirar o Brasil do Mercosul. O argentino não fez por menos: visitou Lula na prisão em Curitiba e, no primeiro discurso de vitória, em outubro, pediu sua libertação. “O comportamento dos dois foi vexaminoso. Mas a realidade vai ensinar aos presidentes vizinhos que não podem um chutar a canela do outro”, avalia o ex-embaixador em Buenos Aires José Botafogo Gonçalves. Na posse, Fernández, pelo menos, mudou o tom. Bolsonaro não fez mea-culpa, mas na última hora voltou atrás na ameaça de não mandar ninguém — o que jamais aconteceu nas relações entre as duas nações — e despachou para Buenos Aires o vice Hamilton Mourão, reinstalado em seu papel de jogar água fria em fervuras, esta no campo diplomático.
Do jeito que a Argentina está (veja o quadro com números), Fernández e Cristina sabem que precisam engolir sapos. A economia do país caminha para o terceiro ano de recessão, 15 milhões de cidadãos não têm o que comer e 10% dos trabalhadores estão desempregados. Como se não bastasse, a desvalorização do peso bateu em 600% nos últimos quatro anos e a taxa de inflação supera os 57%. O maior desafio do governo será evitar a vergonha da terceira moratória deste século que mal começou — houve uma em 2001 e outra em 2014, esta cavada por Cristina. Não há dinheiro em caixa para pagar a dívida pública de 337,3 bilhões de dólares, dos quais 57,9 bilhões são devidos ao Fundo Monetário Internacional (FMI), com quem os peronistas já iniciaram conversas informais. A maior urgência pesa sobre 5,4 bilhões de dólares que vencem neste mês. “É simples assim: para podermos pagar, temos de crescer”, ditou Fernández, fazendo a banca tremer. A reestruturação da dívida e o estímulo ao crescimento ficarão a cargo do ministro da Economia, o heterodoxo Martín Guzmán, discípulo do Nobel de Economia de 2001, Joseph Stiglitz. Ele morava nos Estados Unidos e não tem nenhuma experiência política. “Não se fala e não se quer a moratória. O esforço é para evitá-la. Mas há dúvidas sobre como conseguir isso”, diz o consultor econômico Orlando Ferreres.
Na posse, a ex-presidente emergiu vestida de poncho branco sobre macacão branco e ares de Joana D’Arc em batalha. Na hora de cumprimentar Macri, estendeu a mão, mas virou solenemente o rosto, como quem diz: “Bem feito”. A grande dúvida, dentro e fora do país, é: ela vai acatar as decisões de Fernández ou ele é quem terá de acatar as dela? A temperamental Cristina, ré em seis processos por corrupção (agora em suspenso por sua imunidade parlamentar), vai acumular a presidência do Senado, uma atribuição do vice, e mostrou serviço ao negociar com as diferentes facções peronistas uma coalizão para sustentar o governo. Seu herdeiro, o deputado Máximo Kirchner, foi encarregado de conduzir o aliado Sergio Massa à presidência da Câmara. “O trabalho principal de Fernández será manter o equilíbrio com Cristina Kirchner, responsável pela maioria dos seus votos. Ela controla o Congresso e tem forte apoio na Província de Buenos Aires”, resume Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria.
O balcão do qual o general Mourão assistiu à festa tinha apenas quatro presidentes presentes: o de Cuba, Miguel Díaz-Canel, o do Paraguai, Mario Abdo Benítez, o do Chile, Sebastián Piñera, e o do Uruguai, Tabaré Vázquez, que viajou acompanhado do sucessor eleito, Lacalle Pou. Depois da cerimônia, Mourão teve chance de posar com Fernández e com o novo chanceler, Felipe Solá, em demonstração de ânimos apaziguados — ao menos por enquanto.
Pelo cordão umbilical do Mercosul e por força de tratados bilaterais, sobretudo no setor automotivo, Brasil e Argentina têm as economias entrelaçadas. O mercado argentino é o maior comprador de manufaturas brasileiras, mas as exportações caíram 36,6% entre janeiro e novembro, em comparação com o mesmo período de 2018. Com a indústria dos dois lados em marcha lenta, é melhor trocar a ideologia pelo pragmatismo do business is business.
Publicado em VEJA de 18 de dezembro de 2019, edição nº 2665