Poucas datas despertam tanto patriotismo em Israel quanto o Dia da Memória, em 13 de maio, dedicado aos soldados abatidos nos campos de batalha desde a fundação do país, em 1948. Neste ano, o feriado de natureza pacífica se converteu em mais um daqueles turbulentos episódios em que uma fatia da população, farta da sangrenta guerra de oito meses contra o Hamas, expôs sem filtros sua indignação — tudo sob os holofotes globais que vêm lançando luz sobre as rachaduras deixadas pelo conflito. No Monte Herzl, famoso cemitério de Jerusalém, parentes de jovens recrutas e de sequestrados pelo grupo terrorista, que no fatídico 7 de outubro capitaneou os bárbaros ataques produzindo mortes em série, agitavam raivosas bandeiras contra o ultradesgastado primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, em quem já não confiam para trazer os reféns de volta. “Você levou meus filhos. Seu lixo!”, gritava a multidão, dando contornos ao isolamento sem precedentes do premiê, dentro e fora do país.
O grande combustível para a insatisfação de uma ala crescente dos israelenses e da banda do Ocidente que historicamente apoia Israel é a inexistência de um horizonte para o desfecho do conflito, que Netanyahu estica sob justificativas que não convencem quase ninguém. Agarrado ao poder por dezesseis anos, agora à frente de uma coalizão de extrema direita, ele antecipou o avanço militar contra Rafah, na porção sul de Gaza, sem dar ouvidos à comunidade internacional, preocupada com as baixas humanas que se acumulam e pelo cenário de terra devastada no enclave, onde milhares passam fome. Para Netanyahu, Rafah representaria o derradeiro refúgio do Hamas, daí ser peça central — o que os analistas refutam, sob o razoável argumento de que eles vêm se reorganizando em outras partes. Para os observadores, o objetivo do governo de plantão é prolongar a guerra, da qual depende sua própria sobrevivência política.
A solitária posição de Netanyahu foi amplificada com tintas como nunca antes, depois que os Estados Unidos, parceiro incondicional de Israel, tomou uma medida de envergadura no intrincado tabuleiro geopolítico: suspendeu o envio de 3 500 bombas a Tel Aviv, algo que só encontra paralelo na decisão de Ronald Reagan de cortar o fornecimento de aviões militares aos israelenses, quatro décadas atrás, em resposta à invasão ao Líbano. “Civis têm sido mortos em Gaza como consequência dessas bombas”, disse o presidente Joe Biden, reforçando que não pretende contribuir com o drama que ganha escala em Rafah, de onde mais de 450 000 civis debandaram para escapar do iminente ataque. E Biden foi além, pondo ainda à mesa a possibilidade de frear outras remessas de armamentos ao aliado com quem já disse manter “elo sólido como uma rocha”. “O afastamento dos Estados Unidos representa um grave problema para a segurança de Israel”, afirma Chuck Freilich, do Instituto de Estudos de Segurança Nacional da Universidade de Tel Aviv.
A jogada americana precisa ser vista sob a perspectiva das complexas circunstâncias de hoje. Em meio a uma disputa eleitoral acirrada contra Donald Trump, Biden teme que, no polarizado cenário, um apoio sem ressalvas a Israel, rechaçado por um naco da população americana (sobretudo entre os mais jovens), acabe lhe custando caro. As manifestações pró-Palestina, que saltaram das prestigiadas universidades nos Estados Unidos para outros países, são um sinal da delicadeza da linha sobre a qual caminha o atual ocupante do Salão Oval. Sob pressão, a Casa Branca soltou um relatório enfatizando ser necessário investigar se os armamentos mandados para Netanyahu “foram usados pelas forças israelenses de forma inconsistente com suas obrigações perante a lei humanitária internacional”. Diante de tão numerosos recados, o mandachuva israelense disparou: “Se tivermos de ficar sozinhos, ficaremos”, postou em suas redes sociais, ciente de que o teatro da guerra exige frases de efeito. Na prática, Washington segue irrigando com vultosas cifras os cofres do pequeno país — acaba, inclusive, de anunciar 1 bilhão de dólares extras a Israel, que se somam aos 15 bilhões recém-aprovados pelo Congresso americano.
Enquanto Tel Aviv avisa estar na fase final dos preparativos para a grande ofensiva em Rafah, as costuras diplomáticas para um cessar-fogo continuam travadas. Depois de tantas idas e vindas, funcionários do governo israelense deixaram vazar o receio de que o Egito, mediador das negociações de paz, abandone a missão. Os dois países vêm se acusando mutuamente de represar a ajuda humanitária a Gaza. Em gesto simbólico, os egípcios afirmaram ainda se juntar à África do Sul no processo que acusa Israel de genocídio, no Tribunal Penal Internacional. Enquanto isso, a paz se distancia, de modo inapelável. “Nas últimas semanas, nem Israel nem o Hamas demonstraram qualquer vontade de chegar a uma solução”, diz Gershon Baskin, diretor para o Oriente Médio da International Communities Organisation. E assim, apostando na guerra, Netanyahu se isola à sombra da irracionalidade.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893