Quando ouvi o telefone tocar, minha espinha gelou. Foi numa sexta-feira, às 7 da manhã, e sabia que não era notícia boa. Do outro lado, escutei a voz do soldado israelense encarregado de atualizar nossa família sobre o paradeiro de meu irmão, Michel Nisembaum (no porta-retratos), um dos 125 reféns na lista atual. Aos 59 anos, ele desapareceu no ataque dos terroristas do Hamas contra Israel, em 7 de outubro do ano passado, quando tantas vidas foram ceifadas. O rapaz do Exército disse apenas que me levaria da cidade onde moro, Berseba, para a casa de uma das duas filhas de Michel, em Ashkelon. Falou que tinha uma informação a nos dar, e só. Nesses oito meses de guerra, havíamos sido procurados pelas forças de segurança duas vezes: no dia em que acharam o carro de meu irmão incendiado e, depois, quando um geolocalizador indicou que seu computador estava em Gaza. Indo ao encontro de minhas sobrinhas, naquele trajeto de 60 quilômetros, o resto de esperança à qual eu me agarrava foi morrendo. Até que veio a confirmação: Michel foi encontrado sem vida no enclave, junto a corpos de outros dois reféns. Fizeram testes de DNA, radiografias dos dentes e dos ossos para identificá-lo. Era ele.
Nesse pouco tempo processando a perda, me bateram vários sentimentos. Enterrar Michel foi a coisa mais difícil que já fiz. Além de ser sua irmã mais velha, era como uma segunda mãe. Na infância, o levava para passear, dava de comer, o consolava quando chorava, e aquelas cenas voltaram todas à memória. Ao partir de Niterói rumo a Israel, eu aos 17 anos e ele com 10, fui sua única responsável por um ano, até que nossa mãe também veio, todos nós em busca de uma vida melhor. Por mais terrível que tenha sido ouvir aquelas palavras — ‘Michel está morto’ —, foi uma espécie de alívio descobrir o que aconteceu, ainda que o ponto-final seja tão profundamente doloroso. Pelo menos tivemos um corpo para enterrar e para homenagear nos sete dias do shivá, o luto judaico. Ele agora está aqui comigo, com suas duas filhas, seis netos e amigos.
Vi Michel pela última vez dois dias antes do ataque do Hamas. Ele morava a 2 quilômetros de Gaza e tinha ido visitar nossa mãe. Fazia sol, e tomamos café na varanda. Logo ele foi embora, precisava trabalhar. Era técnico de computação e guia turístico. Como iria imaginar que nunca mais o abraçaria? No fatídico dia 7, quando soaram os alarmes de ataques aéreos, o genro de Michel, que é militar, pediu que ele fosse a Ashkelon para ficar com uma das netas, enquanto sua ajuda era requisitada. Ninguém sabia que se tratava de uma invasão. Telefonei para meu irmão, mas nada de atender. Tentei contato outra vez. Aí atendeu um terrorista dizendo, em árabe: ‘O Hamas está aqui, o Hamas está em Israel!’. Me contaram que, no caminho, Michel ainda ajudou um casal que não conhecia a região a achar um lugar seguro para ficar, mesmo correndo o risco de ser pego. Nem chegou à casa da neta. Morreu baleado no percurso.
Passei meses fazendo ativismo para chamar a atenção para a questão dos reféns, que ficou escanteada na guerra. Acho que o Hamas precisa ser eliminado. Esses terroristas são piores que animais. Não matam por instinto, mas por esporte. Por outro lado, não sei se o governo israelense fez tudo o que pôde para trazer meu irmão com vida, assim como para recuperar os demais reféns capturados. Tive esperança de que o governo Lula exercesse alguma influência nas negociações pelo cessar-fogo, o que faria com que todos voltassem para casa. Não aconteceu. Por ora, decidi dar uma pausa. Minha mãe segue abalada, a saúde deteriorou-se. Quero ter um tempo com a família. Nisso, me inspiro no meu irmão, um excelente pai e avô, que gostava de fazer piada com tudo. Torço para que voltemos a ter razão para rir.
Mary Shohat em depoimento a Amanda Péchy
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896