Aos 45 anos, dona de uma fortuna avaliada em 1 bilhão de dólares, a atriz e cantora Zhao Wei era, até agosto, a expressão máxima da fama na indústria cultural da China. Seu nome abrilhantava dezenas de shows, novelas e filmes de gosto duvidoso, é verdade, mas de inegável destaque entre os mais vistos nas plataformas de streaming. Seu reinado parecia inabalável, até que, da noite para o dia, ela e o marido, Huang Youlong, foram acusados de fraude e manobras financeiras ilícitas e se tornaram párias nacionais. Zhao Wei caiu na rede da nova cruzada empreendida pelo Partido Comunista da China para combater a corrupção, os costumes censuráveis e a influência externa e preservar os “valores chineses” — o que, na prática, significa turbinar ainda mais os já onipresentes mecanismos de controle sobre a vida da população.
Fazer a China chegar ao ponto a que chegou, com empresas gigantescas fornecendo boa parte dos bens consumidos no planeta, teve a contrapartida de abrir grandes frestas na sua fechadíssima sociedade, por onde os jovens, principalmente, puderam absorver conceitos e padrões ocidentais. No caminho que se propôs, de transformar o país na maior potência do planeta, o presidente Xi Jinping trata agora de, antes que seja tarde, cerrar as brechas — e uma de suas armas é a exposição e o combate ao culto das celebridades que virou mania nacional. Um comunicado da Comissão Central de Inspeção Disciplinar emitido em agosto lista medidas de arrocho dos parafusos da censura para fazer frente a uma “onda de notícias negativas envolvendo famosos”, acusados de comportamento “vulgar e obsceno”.
Além de inserir artistas populares na categoria de vilões, as autoridades também apertam o cerco contra os excessos cometidos por seus fanáticos admiradores, enquadrados em um conjunto de dez medidas destinadas a “pôr fim ao caos” criado pelos fã-clubes, um negócio muito sério na China. Uma das medidas proibiu a divulgação dos rankings de popularidade, medidos pela dedicação dos fãs e a quantidade de dinheiro que arrecadam para promover seus favoritos. Para pintar um avião inteiro, publicar anúncios em grandes jornais e outras ações comemorativas de louvação ao aniversário, neste mês, de Jimin, integrante da popularíssima banda coreana BTS, os seguidores reuniram 155 000 dólares em apenas três minutos de coleta. “O potencial desses jovens para se organizar e mobilizar multidões é uma grande preocupação do governo”, diz Yun Jiang, especialista do China Policy Centre, grupo sediado em Ottawa, no Canadá.
O mesmo empenho em preservar valores tradicionais — e, por tabela, controlar o que os chineses fazem e pensam — levou o governo a proibir que crianças e adolescentes joguem mais de três horas de videogame por semana (as plataformas cuidam de fiscalizar) e a abolir o bilionário negócio de aulas particulares para candidatos ao Gaokao, o temido vestibular para as universidades de elite. Ensino, só mesmo na escola pública, onde o currículo foi reformado para abrigar pérolas do xiismo, como está sendo chamada a doutrina pregada pelo presidente. Até no casamento o governo se mete: candidatos ao divórcio agora têm de cruzar um período de “reflexão” antes de entrar com o processo formal. Um desestímulo que tem a ver com as baixas taxas de natalidade.
Outro alvo preferencial da cruzada cultural de Xi é o comportamento “afeminado”, reflexo do estilo andrógino das estrelas do K-pop, como o BTS, que fascinam os chineses. Segundo a imprensa oficial, as roupas unissex e a maquiagem pesada que viraram moda entre os meninos compromete a saúde e o vigor da mão de obra jovem, essencial para o progresso. A TV chinesa tem o costume de borrar o lóbulo das orelhas dos rapazes para esconder furinhos de brincos e usa o mesmo recurso em relação a tatuagens e rabos de cavalo masculinos. “Para cultivar gerações capazes de exercer a responsabilidade de um rejuvenescimento nacional, temos de resistir à erosão provocada pela cultura indecente”, proclamou a agência oficial Xinhua. “O Partido Comunista não se sente confortável com expressões de individualismo que possam transgredir suas normas padronizadas”, explica, com muito mais clareza de raciocínio, Rana Mitter, professor de história e política chinesa na Universidade de Oxford.
A campanha de preservação de valores é acompanhada de filmes e cerimônias de tom nacionalista. As comemorações dos 100 anos do Partido Comunista, em julho, foram um festival de desfiles de militares e estudantes embandeirados. Lançado no começo do mês, para coincidir com um feriado prolongado, A Batalha do Lago Changjin, reconstituição sem muito rigor histórico de uma vitória crucial de “voluntários” chineses contra o Exército americano na Guerra da Coreia, bateu recorde de bilheteria em um só dia (60 milhões de dólares), apesar das duas horas e 56 minutos de duração. Essas investidas sobre a vida cotidiana dos chineses também servem para prepará-los para o terceiro mandato de Xi, que se inicia em 2022. O slogan será “prosperidade comum” e tem como prioridade o combate à desigualdade, uma bandeira que está no cerne do comunismo e agrada à classe média, ressentida com a ostentação dos novos bilionários. De celebridades a conglomerados gigantes, passando pelas trepidações da megaincorporadora Evergrande, o governo, em nome de uma melhor distribuição de recursos, vem interferindo com gosto no setor privado, que durante décadas teve certa autonomia para agir, desde que mantivesse crescimento acelerado. Convocadas a repartir riquezas, Tencent e Alibaba, as maiores da internet, disciplinadamente anunciaram projetos milionários para treinar e impulsionar pequenos negócios. Na China potência mundial, só há lugar para uma grande estrela, e seu nome é Xi Jinping. O resto é censura.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759