Em livro ilustrado por Bárbara Quintino, o historiador Luiz Antônio Simas resgata monstros, assombrações e visagens da cultura popular brasileira. Bestiário Brasileiro: Monstros, Visagens e Assombrações (Bazar do Tempo) traz um inventário de manifestações do imaginário coletivo oriundas dos universos rural e urbano. Simas, que estará na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro, entre os dias 9 e 13, segue os passos de Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) ao descrever e contextualizar figuras como o Boitatá, o Curupira, a sereia Uiara, o Velho do Saco, a Loira do Banheiro e vários outros, que ganham forma nos traços coloridos e lúdicos de Bárbara. Carioca, filho e neto de pernambucanos e alagoanas, o escritor também resgata uma expressão oriunda dos estados nordestinos, a visagem, categoria referente às monstruosidades que se materializam diante dos descrentes. A seguir, os principais trechos da conversa.
O que um folclore de um país diz sobre o povo dele? Eu acho que folclore, ou melhor, cultura popular, define o que aquele povo tem do ponto de vista da construção de sentido de vida, de beleza, mas também fala muito sobre nossos horrores e medos. Essas assombrações e visagens dizem muito sobre o que nós somos, tanto em termos do que construímos como sentido de vida, quanto daquilo que temos de medonho. É um indício poderoso para tentarmos entender quem somos.
Por que você prefere usar o termo “cultura popular” em vez de “folclore”? O termo folclore acabou ganhando certos sentidos sociais que o vinculam muito ao campo do pitoresco. Isso é complicado porque é como se tivéssemos uma cultura erudita e rebuscada, mas a cultura do povo fosse relegada ao campo do pitoresco. Prefiro trabalhar com a ideia mais ampla de cultura popular para não depreciar o complexo de sabedorias do povo.
Por que os monstros brasileiros não são tão populares mundialmente quanto os monstros clássicos da cultura anglo-saxã? Acho que talvez porque fomos colônia, não metrópole. O colonialismo opera na depreciação das culturas dos povos oprimidos. Temos monstros brasileiríssimos vinculados às culturas indígenas, às redefinições das culturas populares ibéricas e ao imaginário das Áfricas plurais, mas há uma desqualificação desses saberes. Além disso, o processo de urbanização é assassino de monstros, especialmente do imaginário rural, enquanto alguns monstros europeus são urbanos.
O escritor Xico Sá festejou nas redes sociais que você recuperou o termo “visagem” no livro. Isso foi intencional? Foi. Eu cresci numa família nordestina, sou o primeiro carioca dela, e visagem era uma coisa muito comum. De repente, ninguém mais falava em visagem. Então foi uma maneira de fazer uma remissão à minha avó e meu avô, que acreditavam profundamente numa variedade impressionante de seres sobrenaturais. Visagem é uma herança familiar.
Você propõe uma diferença entre monstro, assombração e visagem no livro. Pode explicar? O monstro seria aquilo que foge do que consideramos normal. Estudar os monstros é interessante para compreender uma determinada sociedade, porque as sociedades têm repúdio em relação àquilo que se apresenta como diferente. A visagem é aquilo que você vê, algo que se materializa. E a assombração talvez seja a mais amedrontadora, porque nunca precisa ser vista. A assombração é uma porta que bate, um vento que sopra diferente. Eu fui um garoto com muito medo de assombração.
Quais são suas figuras folclóricas preferidas? Quando criança, eu era muito impactado pelas histórias do Boi-Tatá. Mas os monstros que mais me impressionaram eram mais urbanos, como a loura do banheiro e o homem do saco. Eu tinha muito medo de assombrações em geral.
O que você acha que falta para resgatar essas figuras em filmes, séries, livros e outras mídias? Falta fazermos um trabalho mais sistemático de perceber que esses monstros, visagens e assombrações são atualíssimos e contemporâneos. Falta uma consciência de brasilidade, de entendê-la como um manancial enorme para contar histórias e entender sentidos de mundo. O Brasil gosta muito pouco da brasilidade, e falta esse apreço pelo que temos de interessante.
Você acha que incluir essas figuras em jogos eletrônicos e RPGs seria uma forma de resgatá-las? Valeria, se fosse uma interação. Mas o desafio é manter a dimensão do encanto e do assombro. Valeria usar isso para a tela, mas também abrir a possibilidade de nos espantarmos com o mistério ligado à rua. Estamos num mundo muito desencantado. Temos muita religião e pouca magia, e a religião é inimiga da magia.