Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), o lexicógrafo cujo nome virou sinônimo de dicionário no Brasil, tinha uma bela definição de seu ofício: “um caçador de borboletas a correr com uma rede em busca das palavras que voavam”. Pouco lhe importava pegar borboletas multicoloridas, como se tivessem sido desenhadas a mão, referendadas por especialistas, ou disformes, irregulares, nascidas da boca do povo. Palavras são palavras, tenham o carimbo da academia ou o apreço do público. É sempre inglória a briga para afastar dos dicionários, dos registros oficiais, as expressões populares, as invencionices, os anglicismos, como se fossem areia movediça afeita a fazer ruir o edifício oficial. O poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) deu o exato tom da prosa, em um verso que Aurélio usou como epígrafe no Aurélio: “Lutar com as palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã. ”
Numa demonstração evidente de que a luta continua, a venerada e por vezes engessada Academia Brasileira de Letras (ABL) acaba de lançar um projeto virtual para compartilhar novas palavras garimpadas semanalmente por especialistas da casa. Esses termos farão parte da sexta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), a ser lançado no segundo semestre de 2021.
A publicação funciona como um catálogo de vocábulos e de sua respectiva ortografia. Na atualização, haverá a inclusão de pelo menos 1 000 novos verbetes em comparação ao volume lançado em 2009, que tem 381 000 termos (veja o quadro). “É um trabalho de formiguinha que não acaba nunca, o de encontrar novas palavras”, diz o acadêmico e professor Evanildo Bechara, responsável pela coordenação do projeto de desbravar novas expressões para o Volp.
O Volp é uma das bases dos dicionários, que dele bebem, para então ir longe, bem longe — e é extraordinário que os “imortais” abracem a voz das ruas. Os dicionários se ancoram na catalogação da ABL, o da grafia exata, e fazem desse apoio uma mola de propulsão. E, para além do modo correto de escrever, estabelecem os significados, os sinônimos, a etimologia e o uso em frases cotidianas, além, é claro, da descoberta de novas expressões. O Grande Dicionário Houaiss, que completa vinte anos em 2021, tem em sua versão digital (o volume em papel não é mais lançado) mais de 236 000 palavras. “Antes, algumas expressões ficavam anos na geladeira, até ser escolhidas”, diz o filólogo Mauro Villar, coautor do livrão desde a primeira edição e sobrinho de Antônio Houaiss (1915-1999). Hoje, não há limites e alguns brotam da noite para o dia. Exemplo: lockdown, em inglês mesmo.
O processo de enriquecimento vocabular tem uma mãozinha de programas de computador que detectam a frequência em que novas palavras foram usadas em publicações disponíveis on-line e cruzam informações com bancos de dados de outros dicionários já existentes. Ressalte-se, porém, que apesar da aceleração imposta pela tecnologia, a fila de espera para entrar nos dicionários ainda existe. O Oxford English Dictionary, com 600 000 palavras catalogadas, utiliza uma sofisticada rede — que inclui grupos de leitores e colaboração de voluntários — para avaliar as novidades do idioma inglês. Muitas vezes há demora para que o simples calão dê as mãos para a norma culta.
É uma bela aventura. Desde a antiga Mesopotâmia, em 2600 a.C., a civilização achou preciso catalogar vocábulos, registrados, naquele tempo, em uma pequena lasca de pedra. A primeira publicação em português de um dicionário é do século XVIII e comprova a boa ginástica que a língua faz com o passar dos anos — e a grandiosidade histórica do conhecimento registrado. Naquela publicação, o substantivo açúcar é também escrito como “assucar”. “Muitas das palavras disponíveis num dicionário antigo já não são mais usadas, e, no entanto, foram perpetuadas por esse registro na história da língua portuguesa”, diz Sérgio Rodrigues, autor do livro Viva a Língua Brasileira.
Acompanhar a movimentação de um idioma, e entendê-lo como um ser vivo, em eterna mutação, portanto, talvez seja o modo mais fascinante de acompanhar a crônica das sociedades. Em 1906, o filólogo francês Antoine Meillet (1866-1936), o mais celebrado de sua geração, escreveu um pequeno ensaio que serviria de guia incontornável para os amantes da relação entre o que se vive e o que se fala. “Salvo algum acidente histórico, os limites das diversas línguas tendem a coincidir com os limites dos agrupamentos sociais a que chamamos nações”, afirmou Meillet. “A ausência da unidade da língua é o sinal de um Estado recente, como na Bélgica, ou artificialmente construído, como na Áustria. A linguagem é, portanto, eminentemente um fato social”.
Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726