Pouco antes do apito inicial de Brasil e Peru no Estádio Jalisco, em Guadalajara, pela Copa do Mundo do México em 1970, Pelé pediu um instante ao árbitro para amarrar os cadarços das chuteiras. As câmeras, então, focaram no calçado da marca alemã Puma — o gesto era uma ação de marketing que rendeu ao astro brasileiro 125 000 dólares, quantia excepcional para a época. O ídolo do Santos e da seleção foi um pioneiro. Revolucionou o futebol e o significado da camisa 10. Tornou-se o primeiro ícone global da bola, um rei coroado aos 17 anos e reconhecido onde quer que fosse. Ao morrer de câncer, em 29 de dezembro, aos 82 anos, foi reverenciado internacionalmente como nunca nenhum outro brasileiro. Deixou, é claro, uma milionária herança — que, no entanto, não faz jus ao tamanho da lenda do maior craque da história.
Os cerca de 100 milhões de dólares de patrimônio certamente garantirão um futuro tranquilo aos herdeiros do Rei — os seis filhos vivos, a viúva Márcia Aoki e os netos Gabriel e Octávio, descendentes de Sandra Regina, filha reconhecida por Pelé apenas depois de uma batalha judicial, que morreu em 2006. O valor, no entanto, é relativamente baixo se comparado ao ranking de fortunas encabeçado pelo americano Michael Jordan, o Pelé do basquete (veja abaixo). Neymar, Cristiano Ronaldo e Messi, com seus jatinhos e carrões, já garantiram mais que o dobro. Na Arábia Saudita, o português receberá o equivalente a 1 bilhão de reais pelo contrato de um ano. O contexto da época, os anos 1960 e 1970, é a principal explicação para a disparidade, mas não a única.
No auge de Pelé, o mercado de direitos de transmissão engatinhava e não havia sequer patrocínio nas camisas. Em 1961, o então melhor jogador do mundo recebia 2 milhões de cruzeiros do Santos — o que hoje equivaleria a 70 000 reais, salário de jogador iniciante. É fato, porém, que o Rei deu suas caneladas no ramo empresarial. Aconselhado por Pepe Gordo, seu folclórico empresário da época dos primeiros tempos, investiu em empresas de diversos ramos, de embalagens a equipamentos para banheiros, mas fracassou. E, em pleno esplendor de sua fama, o craque ficou no vermelho. Ele ria por não ter de pagar contas em restaurantes e dos presentes que ganhava, como o Mercedes que ficará exposto em seu mausoléu. Contudo, chegou a ser autuado pela Receita Federal durante o governo militar e recebeu ajuda do cartola João Havelange, em troca de apoio político.
Foi nessa época que Pelé começou a virar o jogo ao aceitar a proposta do time americano New York Cosmos, em um contrato que lhe rendeu 7 milhões de dólares por três temporadas — quantia que, corrigida, ficaria na casa dos 50 milhões de dólares. À época, o jornal The New York Times tratou o valor como “indecente”, de tão acima da média. Com as lições aprendidas na terra do marketing, Pelé passou a faturar muito mais depois de encerrar a carreira, mas por décadas seguiu escorregando, associando-se a algumas marcas com pouco prestígio e colecionando rupturas controversas. Houve tempo, porém, para um acerto de contas. Em 2012, a agência Legends 10 atraiu a exclusividade dos direitos de imagem de Pelé e, pegando carona na chegada da Copa e da Olimpíada no Brasil, maximizou o faturamento. Nesse período, Pelé firmou contratos com gigantes como Hublot, Volkswagen, Santander, Coca-Cola, Emirates e Subway. “Nossa estratégia foi investir em menos quantidade e mais qualidade”, diz o britânico Chris Flannery, cofundador da Legends 10. Até mesmo a boa fase do Santos de Neymar deu início a uma reaproximação. Corrigindo um erro de décadas, o Santos o recontratou como embaixador e garoto-propaganda. “A associação entre marcas é o que transformou alguns esportistas em bilionários”, diz Armênio Neto, especialista em negócios do esporte, que participou dos acordos. “Michael Jordan não teria o tamanho que tem sem a Nike.”
Houve no caminho de Pelé alguns desencontros, como um controverso leilão de relíquias, a valores aviltantes, mas, mesmo com a saúde debilitada, o brasileiro teve fôlego para uma última arrancada nos negócios, sob o comando do empresário americano Joe Fraga, da empresa Sports10, que nos últimos anos assumiu a gestão dos negócios. “Em alguns momentos, o trataram com desrespeito”, diz Fraga. “Ele foi tão mal gerido durante tanto tempo que virou quase obsoleto.” Desde 2017, Fraga promoveu uma reformulação que incluiu a criação de uma fundação, presença ativa nas redes sociais (no Instagram são 15 milhões de seguidores), interação com ídolos da atualidade e entrada no universo dos e-sports. “Ele me chamou de maluco algumas vezes, mas funcionou”, diz Fraga. “Qual ex-atleta na casa dos 80 anos conseguiu se manter tão relevante quanto ele?” É verdade, mas Pelé merecia um tamanho econômico muito maior.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824