Desde os primórdios, o ser humano corre — atrás de uma caça, para escapar de um predador, anunciar a vitória contra os persas, pegar um ônibus e também dentro das pistas de estádios. Não há, no atletismo, modalidade mais celebrada do que os 100 metros rasos, âncora de toda Olimpíada, ímã de atenções globais. A distância é celebrada por servir de régua para nomear o homem e a mulher mais rápidos do planeta. Olho, portanto, neste sábado, 3 de agosto, na final feminina, e domingo, 4, na masculina. Entre elas, as favoritas para o pódio são Sha’Carri Richardson, dos Estados Unidos, Shelly-Ann Fraser-Pryce, da Jamaica, e Julien Alfred, de Santa Lúcia. Entre eles, aposta-se em Noah Lyles, dos Estados Unidos, Kishane Thompson e Oblique Seville, ambos da Jamaica.
O tiro dos homens, por ser um tantinho mais rápido e por centenas de anos de tradição machista, sempre foi mais celebrado. Não há na Olimpíada de Paris, entre os velocistas, nome mais interessante do que Lyles, cuja iconoclastia pode devolver a magia perdida às raias de linha reta desde que Usain Bolt abandonou o esporte, logo depois dos Jogos do Rio, em 2016. Como tudo é questão de tempo, já não basta o ouro. Trata-se de baixar marcas, e Lyles não esconde a ambição: bater o recorde mundial.
Em 2009, há quinze anos, Bolt cravou 9s58. Em julho deste ano, Lyles fez 9s81. É uma eternidade de diferença, mas ele vem voando. Kishane Thompson tem 9s76, anotado em junho, mas com vento acima da média. Oblique Seville já cruzou a linha de chegada a 9s82. Seria espetacular se o feito de Bolt virasse pó, agora, e um dia isso acontecerá — mas a pergunta de 1 milhão de dólares, mãos dadas com a ciência, é outra: qual o limite dos 100 metros? Dito de outro modo: quão rápido seria possível corrê-los, até o ponto de congelamento? Há quem diga que Bolt — ao associar largada perfeita, velocidade máxima durante 3 segundos e pernas compridas, além do sorriso — seria o teto. Estudos recentes, porém, sugerem surpresas, e em algum momento breve o cronômetro será parado antes.
Um reputado estudo do professor Mark Denny, da Universidade Stanford, dos Estados Unidos, indica 9s48 — 10 centésimos de segundo abaixo do mítico número de Bolt. O pesquisador chegou a essa constatação depois de puxar informações de um imenso banco de dados atrelado a levantamentos de fisiologia e esforço. Há um obstáculo humano, demasiadamente humano: para encurtar os ponteiros, é preciso aceleração, e isso depende da força com que os pés tocam o chão. Nesse aspecto, a fronteira está muito próxima: ir com mais força do que Bolt, no trote inigualável, pode romper ligamentos e destruir joelhos. Mas há vantagens que podem compensar, como o aprimoramento dos treinamentos e a evolução dos calçados, cada vez mais leves e anatômicos. Instado a comentar os trabalhos científicos que indicam a velocidade máxima, Lyles ironiza, a seu modo: “Por que não posso chegar lá?”, disse. “Meu corpo não conhece a história do mundo, basta desligar a mente e correr, porque coisas incríveis podem acontecer.”
Se tudo der errado, e em Paris a corrida temporal ainda deixar o gênio jamaicano no topo do topo, dois corpos à frente de quem vinha atrás dele, uma dica: acompanhar os 200 metros masculinos, em 8 de agosto. O recorde mundial é de… Bolt, com 19s19. Entre os atletas ainda em atividade, quem chegou mais perto é… Noah Lyles, com 19s31. Em entrevista a VEJA, antes dos Jogos cariocas, Bolt foi direto ao ponto: “Acho difícil, nos próximos anos, alguém correr menos do que os 9s58 dos 100 metros, mas os 200 metros logo serão alcançados”. A oportunidade está logo aí, no Stade de France. Nas duas provas rapidíssimas, o silêncio imposto antes da largada será a antessala de instantes únicos, que passam rápido, zás-trás, mas duram para sempre. O céu é o limite, mas só saberemos no futuro — daí o fascínio da evolução atlética.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904