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O ouro já é delas: o feito inédito das mulheres na Olimpíada de Paris

Elas comparecerão aos Jogos em número igual ao dos homens — um avanço notável

Por Paula Freitas Atualizado em 3 jun 2024, 16h40 - Publicado em 26 Maio 2024, 08h00
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  • Nos anos 1940, uma lei da Era Vargas vetava às mulheres a prática de esportes que, sob o filtro do preconceito, não seriam compatíveis com sua “natureza”. A norma ganhou novas tintas duas décadas depois, com a elaboração de uma lista de modalidades contraindicadas à ala feminina, entre as quais o futebol. Artigos científicos sustentavam a exclusão apoiados em conceitos sem respaldo, como o de que elas não eram talhadas para o embate físico, dado os ossos frágeis e a baixa concentração de glóbulos vermelhos, sem falar na menor “resistência nervosa”. Custou para o mundo girar: apenas em 1983 puderam entrar em campo sem travas legais, dez anos depois das europeias, que também penaram fora dos gramados.

    A vagarosa marcha brasileira nesse campo acaba de receber um empurrão e tanto com a escolha do país para sediar a próxima Copa do Mundo feminina, em 2027 — oportunidade que, se bem aproveitada, tem tudo para dar visibilidade a jogadoras talentosas e atrair dinheiro para essa atividade que, para muitas, é praticada na raça. O recente movimento ocorre num caldeirão em que fervilham boas notícias para as atletas de todos os cantos do planeta, prestes a cravar uma marca histórica: pela primeira vez, vão comparecer a uma Olimpíada – a de Paris, entre 26 de julho e 11 de agosto — em número equivalente ao dos homens (veja o quadro abaixo).

    No caso do Brasil, a tirar pelas vagas conquistadas até agora, elas serão a maioria. Dos 217 nomes confirmados para os Jogos, respondem por 129 — 59% entre os que vão batalhar pelas 329 medalhas (situação que já reflete a eliminação dos homens no futebol). São feitos notáveis, que se inserem no caldo das conquistas das mulheres ao longo do século XX — processo que tomou impulso com as bandeiras em prol da igualdade de gênero agitadas no fim da década de 1960. “Não dá para separar o que estamos observando nos esportes do progresso da própria sociedade”, diz Leda Maria da Costa, pesquisadora de gênero e esportes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Antes de desembarcar com tudo em gramados, piscinas, pistas e tatames — em Paris, estarão em 100% das disputas —, elas já haviam ocupado as carteiras universitárias, diplomando-se médicas, advogadas e engenheiras. Nos esportes, no entanto, esbarraram num sólido muro, com suas bases fincadas no nascedouro dos Jogos da Era Moderna, na Grécia, em 1896 — uma estreia sem mulheres. À frente da empreitada estava o francês Barão de Coubertin (1863-1937), autor de um comentário que hoje fere ouvidos, mas àquele tempo foi recebido com naturalidade: “Impraticável, desinteressante, inestética e, não hesitamos em acrescentar, incorreta — é isso que seria uma Olimpíada com mulheres”.

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    Na vez de Paris, em 1900, elas eram minguadas 22 representantes, que nem sequer duelavam por medalhas. Seu prêmio eram certificados de participação. Em 1924, na mesma Cidade-Luz, foram 4% do total, o que dá a dimensão do quão relevante é o salto de hoje. Nesse percurso, um sacolejo decisivo veio do ímpeto revolucionário de uma francesa, Alice Milliat, que fundou os Jogos Mundiais Femininos nos anos 1920, um evento à parte que acabou por chamar a atenção do Comitê Olímpico Internacional (COI). Em 1936, elas enfim ganharam status de atletas olímpicas, embora só bem mais tarde, nos Jogos londrinos de 2012, uma medida concreta tenha sacudido a cena: ficou estabelecido que todas as modalidades deveriam contar com pelo menos um homem e uma mulher, dando novo gás a elas. Em Paris, o COI foi mais longe, ao definir que os dois gêneros terão direito ao mesmo quinhão de vagas — uma espécie de cota, o que faz com que os países corram atrás da equidade.

    NO PASSADO - Barão de Coubertin: “É incorreto mulher praticar esportes”
    NO PASSADO - Barão de Coubertin: “É incorreto mulher praticar esportes” (Fox Photos/Hulton Archive/Getty Images)

    O preconceito, porém, não se dissolveu de todo, manifestando-se em muitas camadas. “Nunca imaginei que chegaríamos tão longe, mas as barreiras ainda estão presentes”, disse a VEJA Sandra Pires, que formou a vitoriosa dupla de vôlei de praia em 1996, na Olimpíada de Atlanta, com Jackie Silva, ambas donas da primeira medalha olímpica de ouro concedida a brasileiras. “Na hora da premiação, veio um recado da Federação Internacional de que deveríamos subir ao pódio de biquíni, e não de agasalho”, lembra Jackie, com um fio de tristeza. Não raro, ainda vêm à tona casos de assédio, como a repugnante cena de Luis Rubiales, presidente da Federação Espanhola de Futebol, tascando um beijo na boca não consentido na atacante Jenni Hermoso, da equipe do país. Causou indignação e custou o cargo de Rubiales — um bom sinal dos tempos. Também no bolso a desigualdade se faz sentir, com um abismo entre o que faturam homens e mulheres.

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    Mesmo que o cenário exija avanços, e há muita estrada pela frente, sob o prisma histórico eles já são extraordinários. Considerando que a primeira brasileira a pisar no palco olímpico foi a nadadora Maria Lenk, em 1932, e que a melhor posição obtida pelo país na banda feminina, até os anos 1960, havia sido um quarto lugar da saltadora Aída dos Santos, o que se vê agora é uma incrível virada. Hoje com 87 anos, Aída lembra que os olhares atravessados ao optar pelo atletismo começavam em casa. “Meu pai chegou a bater em mim porque eu saía escondido para poder competir”, contou a VEJA. Nos Jogos de Tóquio, em 1964, Aída foi a única integrante feminina de toda a delegação brasileira. O torneio que se avizinha é capítulo de um momento de muito mais público e com mais dinheiro girando para elas, o que faz esportistas como Ana Marcela Cunha, que vai encarar as revoltas águas do Rio Sena em busca do segundo ouro consecutivo na maratona aquática, pontuar: “A equidade de gêneros é um marco a ser celebrado no esporte”. Em Paris, a voz e a vez são delas.

    Com reportagem de Caio Saad

    Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894

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