A agressão e a mentira custaram caro ao jogador de futebol Daniel Alves. Na quinta-feira, 22, ele foi condenado a cumprir pena de quatro anos e meio de cadeia em regime fechado e a pagar uma indenização de 150 000 euros (802 000 reais) — pagos, aliás, com a ajuda de Neymar e seu pai — por estupro de uma jovem de 23 anos no banheiro de uma boate luxuosa de Barcelona, na Espanha, a Sutton. O Ministério Público espanhol havia pedido nove anos de pena. A acusação indicava doze anos. Na decisão, o tribunal considerou provada a agressão sexual sem consentimento, com penetração vaginal. O julgamento foi realizado durante três dias, no início de fevereiro, numa das salas do Tribunal Provincial da cidade catalã. O atleta — preso há pouco mais de um ano e nome cobiçado para os rachas no pátio — foi diariamente escoltado por policiais em meio a corredores alternativos. A ideia era escapar da curiosidade dos flashes de fotógrafos e câmeras de televisão.
Sentou-se, a cada manhã e tarde das audições, diante dos magistrados alocados num conjunto de mesas em forma de U — espaço sem pompa, de luz fria, com jeitão de serviço público. Ele daria seu depoimento no primeiro dia de sessões, mas a advogada que o acompanha conseguiu adiá-lo para a terceira e derradeira rodada — ideia que o ajudaria no tom de algumas das respostas, mas que de nada adiantou. A vítima foi protegida por um biombo, de modo a não cruzar o olhar com o réu e para preservar sua identidade, protegida a todo custo da ávida imprensa sensacionalista.
A pena é histórica e carrega um recado: famosos não são impunes, boleiros precisam seguir regras, e cabe às mulheres — e apenas a elas — decidir o que fazer em relacionamentos com os homens. Daniel Alves é agora um presidiário, já não mais em detenção preventiva, embora caiba recurso no Tribunal de Apelação. Virou sombra do veloz lateral-direito, recordista de títulos, que o técnico Tite levou para a Copa do Catar, em 2022, já com 39 anos de idade, veterano, tratando-o como exemplo para os companheiros. “Ele transcende o futebol, é muito mais do que jogar bola”, disse o treinador. Em 30 de dezembro, vinte dias depois da eliminação do Brasil para a Croácia, nos pênaltis, Daniel Alves foi com amigos para a casa noturna catalã, frequentada por esportistas, artistas e a alta roda. No setor VIP do estabelecimento, deu-se o crime que insistia em dizer não ter cometido. Depois da denúncia, não parou de disparar lorotas, uma atrás da outra, em tentativa de escapar do veredicto.
Ele mudou a versão do episódio cinco vezes, embaralhando o real e o imaginário. Antes de ser preso, disse para uma emissora de televisão que não conhecia a vítima. “Sinto muito, mas não sei quem é essa senhora”, afirmou. Depois, para a polícia, reconheceu ter entrado no banheiro com a moça, mas nada teria ocorrido. Na fabulação oficial de número 3, admitiu o sexo oral — e não havia como desmentir, visto a agredida ter oferecido detalhes de uma tatuagem muito próxima das partes genitais do algoz. Em seguida, finalmente reconheceu a relação sexual com penetração, mas supostamente acordada entre ambos. Alegou ter fugido da verdade para manter o casamento com a modelo Joana Sanz — como as coisas desandaram dentro de casa, jogou tudo às favas e foi defender a própria pele.
Na quinta e derradeira invencionice, revelou ter feito tudo o que fez porque havia bebido muito. Havia uma estratégia nesse caminho: um dos artigos do Código Penal espanhol prevê atenuante caso haja “grave vício em bebidas alcoólicas, drogas ou outras substâncias que produzam efeitos análogos”. Orientada, a ex-companheira do jogador, Joana, foi clara diante da juíza: “Ele foi comer com amigos no restaurante. Passou o dia e voltou eram quase 4 da manhã. Voltou muito bêbado, fedendo a álcool. Bateu no armário e caiu na cama”. Não colou. Em sua oitiva, como derradeira tentativa de escapar das grades, Daniel Alves, com voz calma e pausada, resumiu a história toda a um encontro consensual. “Não sou um homem violento, nem sequer a agarrei pelos cabelos […] estávamos gostando”. Em outro momento, desceu a detalhes. “Ela não se apoiou na pia, não me disse que queria ir embora, eu não dei um tapa nela, não a agarrei pelos cabelos e a joguei no chão.” As negativas, tal qual as da mulher naquela noite, não foram acatadas. O futuro de Daniel Alves agora será traçado entre quatro paredes. De fato, ele transcende — e como — o futebol.
Por ora, dada a decisão anunciada, Daniel Alves é culpado, e, sabendo-se detalhes do que ocorreu na véspera do réveillon na Sutton, muito dificilmente escaparia da espada da Justiça. Deve-se levar em conta, contudo, que ele foi encurralado em virtude de um saudável movimento da sociedade. Em agosto de 2022, a Espanha aprovou uma lei logo apelidada de “Só Sim é Sim”, segundo a qual toda interação sexual exige consentimento claríssimo, com as vontades expressadas de forma livre, voluntária e clara. A norma ganhou relevo e foi aprovada, depois de um crime sexual de 2016 contra uma jovem de 18 anos. A garota foi abusada por cinco homens que, em um grupo de WhatsApp, se intitulava “La Manada”. As autoridades legais consideraram ter havido apenas crime de abuso sexual, e não estupro, que resultaria em pena maior. Uma onda de protestos mudou a prosa. Daniel Alves foi, portanto, o primeiro a ser condenado pela nova letra.
A prisão preventiva do boleiro, no início de 2023, inspirou projeto semelhante no Brasil. Inicialmente, bares e endereços de baladas adotaram seus próprios protocolos de controle, com rigor na entrada e uso de câmeras de vigilância. Campanhas foram divulgadas pela internet e pela televisão. No final do ano, o presidente Lula sancionou uma lei levada ao Congresso, com regras nítidas e punições rigorosas para os estabelecimentos que não cumprirem o determinado no papel. As medidas valem tanto para a proteção das clientes como das funcionárias. Trata-se do “Não é Não”, que passa a vigorar no segundo semestre. Um detalhe, porém, gerou reclamações. Ficaram fora da legislação, e portanto alheios aos minuciosos cuidados, as igrejas e templos religiosos — locais de intensa aglomeração e de onde surgiram, nos últimos anos, acusações de assédio sexual, inclusive contra menores de idade.
Não é possível ignorar, no entanto, que a maior parte dos crimes acontece em âmbito doméstico — e não em noites regadas a álcool e drogas, em camarotes escurinhos e banheiros tratados como se fossem palácios. De acordo com o mais recente relatório da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o ano de 2023 somou o maior número de denúncias de estupros desde que os dados começaram a ser registrados, em 2001. A maior parte deles, 73%, aconteceu dentro de casa. “Nas últimas duas décadas nós nomeamos o feminicídio, começamos a falar da violência contra mulheres, do assédio de homens famosos, de estupro no casamento”, afirma a antropóloga, professora e pesquisadora Debora Diniz. “Mas a punição é o fim da linha, quando tudo já deu errado. O que precisamos, agora, é prevenção, mulheres que saibam identificar relações violentas e homens que rompam com essa estrutura e combatam essas agressões.” A estrada é longa, ainda.
Há o caminho legal — e louve-se, com fanfarra, a pioneira e brasileiríssima Lei Maria da Penha, de 2006, mecanismo de proteção contra mulheres vítimas de violência doméstica. Mas é sempre bom apoiar com estardalhaço, dada a força para iluminar o absurdo, movimentos que condenem os abusos, passo anterior aos avanços nos poderes Legislativo e Executivo. O mais conhecido deles é o #MeToo americano, nascido em 2017 entre as atrizes de Hollywood depois das denúncias (comprovadas) de importunação de um executivo mandachuva e queridinho, Harvey Weinstein. O #MeToo ecoou pelo mundo, inclusive no Brasil, e ainda gera filhotes. “Punições como a de Daniel Alves são uma forma de demonstrar que homens ricos e poderosos não ficarão impunes”, diz a advogada e diretora do Me Too Brasil, Luciana Terra.
A condenação de Daniel Alves joga pressão para cima de um outro personagem do mundo da bola: Robinho, ex-atacante do Santos e da seleção, condenado em segunda instância na Itália a nove anos de prisão por estupro coletivo. Robinho e Daniel Alves, assim como outros jogares de sucesso no Brasil, extrapolaram os limites porque se sentem realezas, tratados como seres especiais a quem as regras não se aplicam. Habilidosos num esporte que paga bem, acumulam fortunas e puxa-sacos, “os parças”, que os levam para noites extravagantes e orgias regadas a álcool. Longe da disciplina e do trabalho árduo, não raro, eles deixam de alcançar em campo tudo o que poderiam (o novo jejum de Copas da seleção brasileira é apenas um aspecto desse fenômeno). Na pior versão, cometem crimes, especialmente contra as mulheres. O caso de Robinho deve ser julgado ainda este ano pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte definirá se o ex-atleta cumprirá a pena no Brasil ou permanecerá leve e faceiro, em Santos, como se nada houvesse.
Aos poucos, jogadores e cidadãos aprendem, na marra, à base de prisões e multas, a conviver com o outro, a lidar com uma vida que não lhes pertence, com educação e respeito. Daniel Alves será para sempre símbolo negativo dessa reviravolta, marco do espírito de nosso tempo. Não por acaso, e com carradas de razão, o cartola Luis Rubiales foi afastado da Federação Espanhola de Futebol e suspenso de qualquer atividade ligada ao esporte depois de beijar na boca, sem autorização, a jogadora de futebol Jenni Hermoso, durante a comemoração do título da Copa do Mundo feminina, realizada ano passado. Disse Hermoso, acuada: “Eu não mereço estar vivendo tudo isso. Por que tenho que estar chorando em casa se não fiz nada?”. É o que ocorre com as vítimas de Daniel Alves e Robinho. Direto ao ponto: só o sim é sim e o não é não.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881