Os 100 metros rasos sempre foram a âncora das olimpíadas. A mística em torno da prova, a régua pela qual a humanidade conhece o ser humano mais rápido entre todos que pisaram na Terra, a fez símbolo do atletismo e muito mais. O vencedor do tiro em linha reta, resolvido no tempo em que se lê as linhas iniciais deste texto, vira personalidade, conquista campanhas publicitárias, estampa capas de jornais e páginas da internet, sobe aos céus. Contudo, desde que Usain Bolt pendurou as sapatilhas, depois de três sucessivos ouros, em 2008, 2012 e 2016, dono de recorde mundial com 9s58, deu-se um vácuo. A modalidade perdeu um tantinho de seu charme. Em Tóquio, no torneio pandêmico de 2020 adiado para 2021, a vitória do italiano Lamont Marcell Jacobs foi tratada como uma vírgula, um ponto fora da curva. Deu-se mais atenção aos 400 metros com barreiras, vencida pelo norueguês Karsten Warholm, com a prata do americano Rai Benjamin e o bronze do brasileiro Alison dos Santos, o Piu (e cá está o trio, novamente, na França).
Sem Bolt, sem charme, como fazer renascer os 100 metros que criaram estrelas como Jesse Owens, Carl Lewis e trapaceiros como Ben Johnson? Era preciso um ímã, um atleta capaz de vencer e aparecer. E então explodiu a figura magnética e provocante do americano Noah Lyles. Ele subiu no topo do pódio na noite quente deste domingo, 4, no Stade de France abarrotado de gente, com o tempo espetacular de 9s79. Queria superar a marca de Bolt, mas não conseguiu. Fica para a próximo. Mas tê-lo campeão é um sopro de novidade interessante demais para ser desdenhado. Iconoclasta, Lyles – que ainda disputará os 200 metros e muito provavelmente o revezamento 4 x 100 – fez da temporada pré-olímpica o palco de seu estardalhaço. Precisava ganhar, para não correr o risco de ser marcado como um mero provocador. Sua ambição: transformar o atletismo, ao menos as grandes competições, em eventos tão ricos e badalados como as partidas de futebol americano e da NBA, a liga americana de basquete. O barulho dos Jogos Olímpicos, de quatro em quatro anos, é muito pouco, quase nada.
Não por acaso, Lyles escolheu a NBA como alvo de suas boutades. Em agosto do ano passado, depois de vencer o Mundial de Atletismo de Budapeste nos 100 metros e nos 200 metros, ele aproveitou uma conferência de imprensa para dar a real: “Vejo sempre as finais da NBA, e quem ganha é campeão do mundo… Campeão do mundo do quê? Dos Estados Unidos? Não me interpretem mal, eu amo os Estados Unidos, mas não somos o mundo inteiro. ” Lyles, a partir de agora, é o mundo inteiro – e convém lembrar que muito provavelmente o Dream Team de LeBron James, Stephen Curry e Kevin Durant, mordido pelos comentários do conterrâneo, também abraçará o globo. Dividirão o estrelato, ao menos nos próximos dias, com Lyles. E lá vai ele, aos 26 anos, tatuado até o pescoço, em permanente desfile de moda, brincalhão, puxando com força os 100 metros ao ponto de onde nunca deveria ter saído. E dá-lhe celebrar a trajetória clássica de um menino que tinha asma, de pais separados, que de repente se descobriu veloz. E está cravado: Nyles é o homem mais rápido do mundo. O jamaicano Kishane Thompson fez o mesmo tempo, mas ficou em segundo na decisão por fotografia. A rigor: Lyles cravou 9s784. Thompson, 9s789. Diferença de cinco milésimos.
Foi a prova dos 100 metros mais apertada de todos os tempos – entre Lyles e o oitavo colocado, houve apenas 12 centésimos de diferença. Todos correram abaixo de 9s91.