Existem pessoas que alcançam marcos históricos quase sem intenção. Elas não planejam grandes descobertas, revoluções ou mudanças significativas. Um exemplo é Cristóvão Colombo (1451-1506), que não tinha a pretensão de chegar a um “Novo Mundo” quando pisou no continente americano pela primeira vez. Seu objetivo, mais modesto, era encontrar uma rota marítima para as Índias. Houve um desvio, e o resto, como sabemos, é História.
Não é todo mundo que terá o impacto de um Colombo, mas alguns, em seus próprios termos, abalam um pouco das estruturas vigentes em uma determinada época. É o caso de Emerson Ferretti, recentemente eleito mandatário do Bahia. Ao se candidatar, Ferretti não imaginava que se tornaria tão simbólico. “Não levantamos nenhuma bandeira”, fez questão de frisar. Apesar disso, o ex-goleiro se tornou o primeiro dirigente assumidamente gay entre todos os clubes das séries A a D do Campeonato Brasileiro, que tem 52 anos, coincidentemente, a mesma idade de Ferretti. O esporte, porém, chegou ao Brasil em 1894, o que torna o feito ainda mais significativo. Não satisfeito com um único pioneirismo, ele também é o primeiro ex-jogador do clube a ascender ao posto de presidente.
No entanto, os desafios não diminuem com a posição inédita. O ex-atleta falou com a VEJA sobre o processo de preparação para o cargo, os planos para a nova gestão, com a presença majoritária do Grupo City no clube, e as dificuldades previstas. Além disso, Ferretti falou sobre a experiência de ter sido um atleta gay, o papel precursor que está desempenhando e os fatores que o levaram a falar abertamente sobre sua sexualidade. “Isso é um avanço gigantesco para o futebol”, enfatiza. “Mostra que estamos evoluindo”.
Você entrou em um momento muito sensível do Bahia, com mudanças profundas com a chegada do Grupo City e algumas turbulências (o clube teve um desempenho abaixo da média no Campeonato Brasileiro). Isso faz com que você assuma atribuições distintas do seu antecessor. Que avaliação você faz deste momento?
O Bahia trouxe o melhor parceiro possível. O Grupo City é o maior gestor de clubes do mundo, tem expertise e uma capacidade financeira gigantesca. Eu confio muito que eles vão transformar o Bahia, como eles fizeram em outros clubes.
Paralelo a isso, o Bahia tem por obrigação atuar em outras áreas. É um mundo de possibilidades que se abriu para o Bahia, que antes só cuidava do futebol. E o tamanho do Bahia, do Esporte Clube Bahia, nesse ambiente, vai ser do tamanho do sonho e do trabalho do seu presidente. Se sentar um presidente que não queira fazer nada, o Bahia vai ficar pequenininho. Mas se tiver um presidente que queira fazer, atuar na área social, na área cultural, na área olímpica, cuidar do seu sócio, da torcida… vai ter um mundo de coisas para fazer. E é isso que eu sonho em fazer. Coloquei na campanha, fui eleito e pretendo executar. Eu quero fazer uma gestão muito linda. Principalmente cuidando do nosso povo, do nosso torcedor.
Apesar de escapar do rebaixamento, o Bahia teve um final de temporada decepcionante. As condições atuais podem exigir um dirigente ainda mais atuante, sobretudo, sendo você o primeiro presidente com atuação no clube como jogador e ídolo da torcida. Como você pretende desempenhar esse papel?
Eu já estive lá dentro e me relaciono com o torcedor do Bahia desde quando eu cheguei aqui, há 24 anos. Eles, quando me encontram na rua, falam comigo. E eu sinto um amor imenso pelo clube.
Como gestão, a primeira coisa que vamos fazer é nos aproximar do Grupo City. Tem sido uma relação distante até então, o que é normal. Inclusive, contratualmente se prevê isso. Mas nós queremos a mesma coisa: um Bahia forte.
Nós somos do futebol, entendemos que podemos ajudar. Não queremos atrapalhar, tomar as decisões ou puxar o tapete de ninguém. Queremos ajudar. Muitas decisões são tomadas de lá para cá. E eles [o Grupo City] não vivenciam o dia a dia do que é o nosso futebol. É muito peculiar, cada país tem a sua cultura. Então, a gente quer se aproximar para facilitar as coisas. Ser a voz e o sentimento do torcedor junto ao Grupo City e ao mesmo tempo se colocar à disposição para ser a voz do Grupo City com o torcedor.
Há muitos desafios para você como presidente. É preciso, por exemplo, fortalecer os esportes olímpicos, aproximar o clube dos torcedores, aumentar a receita e a transparência das decisões internas. Alguma ideia de como pretende começar a atacar essas questões?
A receita que a gente tem dá para trabalhar, mas não dá para fazer o que a gente pretende. A gente precisa ter criatividade para incrementar e estamos trabalhando nisso. Na área olímpica, por exemplo, a gente já está em contato com uma agência especializada em projetos e captação para que possamos buscar recursos para começar o trabalho. Na área social, pretendemos criar a Fundação Esquadrão. Através da Fundação poderemos potencializar o trabalho social que o Bahia já começou a fazer há algum tempo. É através da associação que conseguimos captar receitas para poder fazer todo esse trabalho social junto à nossa torcida e usar o esporte como uma ferramenta de transformação. A Fundação vai ter essa capacidade de captação de receita muito ampla e diversificada. Na área do plano de sócios, queremos motivar o nosso torcedor a se associar ao clube. Para isso, a gente tem que ter um plano atrativo. Logicamente, quando tivermos nossas modalidades olímpicas e produtos licenciados, tudo vai começar a movimentar e isso vai motivar o torcedor a se associar, porque vão ter outros eventos esportivos voltados para os esportes olímpicos. E o futebol dando lucro, nós temos 10% de retorno, o que beneficia todo o clube.
Você começou a jogar nos anos 1980 e encerrou sua carreira nos anos 2000. Muita coisa mudou desde então, mas o futebol continua sendo um esporte homofóbico. Como foi para você ser um atleta homossexual nesse contexto? E o que você acha que mudou desde então?
A minha eleição não teve essa bandeira levantada, não foi o objetivo. Eu me preparei para ser presidente do Bahia. Eu estudei muito, me qualifiquei e fui eleito por isso. Naturalmente, a minha sexualidade vem junto. Não dá mais pra dissociar de mim. E eu acho ótimo, porque a minha vida foi bastante complicada dentro do futebol. Quando eu comecei a me descobrir, em um contexto histórico e geográfico bem mais complicado do que é hoje, o gay era considerado um cidadão de segunda categoria. Desde novo eu entendi que ser gay não era bem visto. Então, eu tive que me proteger a vida toda para poder realizar meu sonho de ser atleta e sobreviver naquele meio. Eu deixei de ser o Emerson pessoa para poder ser o Emerson goleiro. E isso foi muito sofrido, foi um processo muito solitário. Eu tinha que vestir sempre o personagem. E isso cansa. Eu tive depressão, pensei em abandonar o futebol.
Por um lado eu era feliz por realizar meu sonho. Mas por outro, era um desafio muito grande. Eu não podia estar com a pessoa que eu gostaria de estar e viver normalmente. E essa história se repete com todos os outros gays dentro do futebol.
Eu resolvi falar para jogar luz sobre o assunto. Mostrar que um homem gay pode ser tão bom jogador e competente como qualquer outro e desmistificar algumas coisas, porque com a minha história e com a minha fala, eu desmistifico muita coisa. Hoje, os garotos gays que querem ser jogador já tem uma referência. Já sabem que podem. Eu queria deixar um legado para ajudar o futebol a evoluir.
Qual foi o impacto de ter se assumido para você?
As pessoas nunca me agrediram. No estádio é normal a torcida gritar, tentar te atingir, mas isso nunca aconteceu depois que eu falei. Muito pelo contrário, muita gente parabenizou a minha atitude, diziam que tinha sido uma decisão corajosa. Profissionalmente as coisas andaram muito bem, não mudou nada. Eu imagino que tem gente que não fala na minha frente, mas devem fazer piadinhas. Mas se eu pudesse dar um conselho diria: ‘vai procurar terapia’. Porque o problema está na cabeça deles. A minha já não tem mais essa questão. O importante são os avanços que a gente está tendo e como eu estou podendo contribuir com a sociedade. Eu não estou pensando mais em mim, quero ajudar os outros.
Você acha que ter chegado a sua atual posição sendo aberto sobre a sua sexualidade pode resultar em uma quebra de paradigmas no futebol e inspirar novas gerações de jogadores e gestores LGBT+?
Eu nunca imaginei estar nessa posição. As coisas foram acontecendo e eu comecei a entender que eu posso sim ser uma inspiração para muita gente. Essa posição me agrada, não por vaidade ou ego, mas pelo simples fato de poder mostrar que é possível. Agora, eu tenho uma ferramenta, que é o Bahia, na mão para fazer isso. É uma missão tremenda, e eu não estou com medo nenhum. Eu estou com muita vontade de ir em frente e fazer uma coisa linda. É uma quebra de paradigmas. Antes eu não entendia, mas agora eu sei que posso fazer mais.
Por fim, eu queria saber qual é o seu principal sonho como presidente do Bahia. Qual legado você pretende deixar com a sua gestão?
Meu sonho é colocar o sorriso no rosto dos tricolores. É fazer um Bahia forte e campeão dentro de campo. A torcida ficou eufórica que o time não caiu para a segunda divisão, mas isso é pouco, no meu entendimento. Era o possível, mas é pouco. Quero fazer um Bahia forte e campeão dentro e fora dos campos. Deixar uma gestão que orgulhe o torcedor e que mostre que o Bahia se preocupa, atua e ajuda as pessoas. Meu sonho é fazer a marca do Bahia presente em toda a Bahia, de uma forma digna. Espero deixar um legado de alegria, de orgulho e de conquistas e mostrar para todos o quanto o Bahia é grande.