Medalha de ouro no boxe feminino na categoria de até 66 quilos, a argelina Imane Khelif, 25 anos, foi alvo de polêmica e críticas na Olimpíada de Paris por ser portadora de uma condição difícil de entender e, por isso mesmo, sujeita a todo tipo de preconceito — a das pessoas intersexo, nascidas com características biológicas que fogem do padrão binário masculino ou feminino. Imane, cuja aventura parisiense não para de ecoar, faz parte de uma realidade invisível, mas significativa: a ONU estima que 1,7% da população mundial seja intersexo, contingente que pode chegar a 3,5 milhões de indivíduos no Brasil. As crianças e os adolescentes intersexo, geralmente encarados pelas famílias como uma aberração que precisa ser escondida, eram designados no meio médico como “hermafroditas”, hoje um insulto. O termo científico só se consolidou em 1996, quando a letra “I” foi incorporada à sigla LGBTQIA+ em conferência da Academia Americana de Pediatria. A partir daí, a passos lentos, os intersexo vêm denunciando a violência que sofrem e tentando quebrar os tabus sobre sua existência.
Imane — assim como a lutadora taiwanesa Lin Yu-ting, envolta na mesma celeuma — não se define como intersexo, embora tenha os altos níveis de testosterona típicos da condição. Criada como menina, sempre participou de competições femininas e, com apoio da família, decidiu abrir processo contra todos os que acusaram de competição desleal, aí incluídas figuras como a escritora J.K. Rowling, o ex-presidente Donald Trump e o bilionário Elon Musk. Portadora de condição semelhante, a corredora sul-africana Caster Semenya, 33 anos, em seu auge teve igualmente que lutar contra a discriminação e prefere, em vez de intersexo, se definir como “uma mulher diferente”.
A identificação das características intersexo quase sempre aparece depois do nascimento, em genitais ambíguos e na presença de órgãos internos tanto masculinos quanto femininos. Na ausência dessas evidências, a condição só será percebida — quando é — em alterações no crescimento na adolescência. Exames específicos detectam variações hormonais e cromossômicas até então desconhecidas. “A pessoa intersexo tem uma diferença no desenvolvimento sexual nos primeiros meses de gestação, e nem sempre é uma condição visível”, diz a endocrinologista Berenice Bilharinho, do Hospital das Clínicas da USP.
O sociólogo Amiel Vieira, 42, só foi receber o diagnóstico mais decisivo de sua existência aos 33 anos. Ele conta que o criaram como menina e, adolescente, estranhava a quantidade de hormônios que tinha que tomar. Já adulto, encontrou antigos exames de cariótipo — que identifica cromossomos — e soube que possuía a combinação genética XY, típica dos homens. “Tentava me encaixar em um espaço de feminilidade, mas meu corpo se desviava da normalidade e nunca entendi bem”, diz Vieira, que hoje se declara também transgênero, em junção comum nesses casos. “Muitos crescem achando que há algo de errado e vivem um dilema interno. Nesse processo, é comum sofrerem bullying e terem dificuldade de interação social”, afirma a psicóloga Ana Karina Campinho, que atua no Centro de Referência no Atendimento a Pessoas Intersexo do Hospital Universitário Professor Edgar Santos, da UFBA.
A discriminação pode começar antes do nascimento — quando a situação é identificada no pré-natal, as mães frequentemente são orientadas a abortar por má-formação do feto. Após o parto, a pressão para apagar a realidade continua. “Assim que o bebê nasce, tem início uma corrida para fazer a cirurgia genital”, diz Thaís Emília Santos, socióloga e presidente da Associação Brasileira de Intersexo (Abrai). Ela, que é intersexo, deu à luz Jacob, com a mesma condição genética, em 2016. O menino morreu pouco depois de completar 1 ano e veio a inspirar a história de Cacau no remake da novela Renascer, da Globo. A trama original, de 1993, foi pioneira ao tocar no tema com a personagem Buba, vivida por Maria Luisa Mendonça, em termos nada memoráveis — a “hermafrodita” caricata só reforçou o preconceito. Agora, Buba é trans (interpretada pela trans Gabriela Medeiros), e a introdução do bebê intersexo Cacau tenta reparar o imenso estrago.
Além das dificuldades emocionais e sociais, as pessoas intersexo enfrentam sérios impasses jurídicos. A engenheira civil Céu Albuquerque, 33, nasceu com hiperplasia adrenal congênita e genitália ambígua, e, com sexo indefinido, ficou seis meses sem certidão de nascimento e sem acesso à rede pública de saúde. Depois que os médicos concluíram se tratar de uma menina, passou por uma cirurgia íntima malfeita, que lhe provocou dores e infecções recorrentes por toda a vida. “Fiz mais oito operações, já adulta, para tentar reverter a mutilação. É muito difícil conseguir me envolver com alguém”, diz Céu, a primeira a conseguir registro de intersexo no Brasil, em março. Desde 2021, recém-nascidos podem ser registrados com sexo “indefinido”.
Existem mais de 150 variações genéticas que caracterizam a condição, mas a falta de conhecimento faz com que muitos nem saibam que integram essa população. “As famílias precisam estar preparadas para lidar com o diagnóstico. Mas temos que falar muito sobre ele para chegar à conscientização de que ser intersexo não é uma doença”, afirma a psicóloga Ana Karina. Enquanto isso, o estigma persiste, em segredo e em silêncio. Vale, portanto, escutar o que disse Imane ao desembarcar vitoriosa em Argel, na briga contra o ódio: “Quero dizer ao mundo inteiro que sou mulher e continuarei sendo mulher”.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907