Em fevereiro de 1996, o supercomputador Deep Blue, criado pelo gigante americano de tecnologia IBM, alcançou um feito que, cedo ou tarde, se sabia que ocorreria. Ele venceu, em uma partida de xadrez, o lendário jogador do Azerbaijão Garry Kasparov. A disputa entrou para a história — foi a primeira vez que uma máquina superou um campeão mundial da modalidade. Não era para menos: a máquina havia sido preparada para examinar 200 milhões de jogadas por segundo, enquanto o mortal Kasparov era capaz de analisar míseros três movimentos no mesmo período. Desde então ficou evidente que mesmo as grandes lendas jamais seriam capazes de derrotar inteligências artificiais. Por isso mesmo, os principais campeonatos do mundo se tornaram mais rigorosos no controle de fraudes. O que não impediu que competidores fossem suspensos por consultar aparelhos de celular nas visitas ao banheiro ou ocultar fones Bluetooth ocultos no boné. Com o desenvolvimento tecnológico, contudo, os golpes se sofisticaram e agora as suspeitas põem em xeque até o topo do xadrez mundial.
A nova confusão começou há alguns dias, durante o torneio Sinquefield Cup, em St. Louis, nos EUA. Pentacampeão mundial, o norueguês Magnus Carlsen, 31 anos, mantinha a invencibilidade de 53 jogos, algo raro em um esporte cada vez mais competitivo. Mas ele acabaria surpreendido por um desafiante inesperado: o americano Hans Niemann, 19 anos, que ocupava a modesta 49ª posição no ranking mundial. Furioso, Carlsen foi às redes sociais insinuar que seu rival havia trapaceado. Rapidamente, espalharam-se versões que explicariam o resultado.
Fã de xadrez, o bilionário Elon Musk difundiu uma teoria ruidosa: segundo Musk e muitos outros admiradores do xadrez, o jovem Niemann teria usado um plugue anal, cujas vibrações imperceptíveis para a plateia representariam um código sobre qual jogada deveria executar. Niemann defendeu-se e sugeriu disputar uma nova partida nu, submetendo-se inclusive a exames corporais. Não fosse piada, seria o ápice tecnológico de um expediente antigo: o de buscar conselhos externos, seja de um ser humano, seja de uma traquitana eletrônica, em busca do xeque-mate.
O mestre brasileiro Luís Paulo Supi, 183º do mundo, não acredita nas teorias conspiratórias. “É muito improvável ocorrer algo assim em um torneio presencial”, diz. “Existe forte fiscalização e a própria organização negou irregularidades.” De fato, nada foi provado, mas Niemann não é lá muito santo, o que abriu espaço para especulações. Recentemente, ele admitiu que burlou as normas em um campeonato on-line, quando tinha 12 anos, e foi ajudado por um jogador mais experiente. Não à toa, chegou a ser suspenso da plataforma Chess.com, a preferida dos craques do xadrez.
Poucos esportes retrataram tão bem o espírito de seu tempo quanto o xadrez. Na União Soviética, os melhores enxadristas eram usados como garotos-propaganda do comunismo. Entre foguetes e bombas, o xadrez foi protagonista da Guerra Fria. O ápice das contendas se deu em 1972, quando o americano Bobby Fischer superou o russo Boris Spassky, encerrando quatro décadas de hegemonia soviética. Mas Fischer se negou a defender seu reinado diante do russo Anatoly Karpov, por discordar das regras da federação internacional. Karpov, por sua vez, protagonizaria batalhas épicas com Victor Korchnoi e, sobretudo, com Garry Kasparov, num duelo que levou um ano para terminar.
A façanha de Kasparov ocorreu em 1985 — ano de subida ao poder de Mikhail Gorbachev, o homem que demoliria o império soviético — e, de certa forma, serviu como metáfora da ruína da “cortina de ferro”. Karpov, o derrotado, era o preferido dos comunistas, enquanto Kasparov era visto com certa desconfiança pelos mandachuvas do regime. O xadrez é o espelho da vida, com suas estratégias, jogadas políticas e, admita-se ou não, até fraudes.
Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808