Foi outro dia mesmo — e soa inaceitável. Na Copa do Mundo feminina de 1995, as jogadoras brasileiras, e as de muitos outros países, tiveram de recortar, costurar e adaptar os uniformes masculinos do torneio de 1994. Não calhou a ninguém a ideia de ter roupas para elas, de tamanhos e moldes distintos, ainda que os organizadores tivessem oferecido tops de lycra acolchoados para proteger os seios das pancadas das bolas. As coisas melhoraram de lá para cá, é evidente, mas há muito ainda a caminhar — e o Mundial da Austrália e Nova Zelândia, com a finalíssima marcada para 20 de agosto, em Sydney, tem tudo para virar um duplo acontecimento. Será a celebração de alguma igualdade, mas também um marco das dificuldades da próxima curva, porque agora é que são elas. A brasileira Marta, de 37 anos, escolhida seis vezes a melhor do mundo, já perto da aposentadoria, deu a deixa em um discurso em 2019, na sede da ONU, em Nova York. Ela, que durante muito tempo preferiu ficar calada, tocou no nervo: “O preconceito e a falta de oportunidade já me doeram ao longo do meu caminho. Doeu quando meninos não me deixaram jogar. Doeu quando treinadores me tiravam dos campeonatos porque eu era apenas uma menina. Mas minha certeza de onde eu iria chegar nunca me deixou desistir”.
Os avanços do futebol feminino precisam ser destacados — mas seus limites também. A premiação para as equipes campeãs tem aumentado: era de vergonhosos 15 milhões de dólares em 2015, subiu para 30 milhões de dólares em 2019 e agora chegou a 150 milhões de dólares. Muito? Não. Pouquíssimo diante dos 440 milhões de dólares oferecidos a eles no Catar, em dezembro de 2022. Há, porém, decisões boas, gestos positivos que ajudam a erguer o edifício que mal passou do primeiro piso. O Ministério da Gestão e da Inovação do governo de Lula anunciou ponto facultativo para servidores federais nos dias de partidas da seleção canarinho dirigida pela treinadora sueca Pia Sundhage, como já acontece quando os homens de amarelo entram em campo. A companhia aérea Azul anunciou a exibição ao vivo da Copa em 68 aviões de sua frota que têm a tecnologia embarcada para a transmissão em tempo real, em parceria com a Globo e a Sky — como fez no ano passado, no show de Messi e cia. Desde 2019, a CBF exige que os clubes brasileiros da Série A mantenham equipes femininas — a partir de 2027 a obrigatoriedade se estenderá às quatro divisões. “A valorização de questões como equidade de gênero e empoderamento da mulher criou o ambiente ideal para a modalidade atingir no futuro somas equivalentes”, diz Victor Azevedo, professor de marketing do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec).
O negócio começa a girar, é incontestável. Pelo menos 2 bilhões de pessoas devem acompanhar pela televisão os 64 jogos, atalho para que uma empresa como a Visa decidisse entrar em cena com força, como faz já há décadas no mundo masculino. “Queremos derrubar barreiras e dar visibilidade”, diz Camila Novaes, diretora de marketing da operadora de cartões no Brasil, uma das coordenadoras da campanha promocional #escolhajogarcomelas. “Há um indiscutível crescimento do futebol feminino”, ecoa Gilberto Braga, professor de finanças do Ibmec.
O sucesso do torneio na Austrália e Nova Zelândia — com o favoritismo dos Estados Unidos de Megan Rapinoe, craque na bola e na liderança, porta-voz da luta pela equidade salarial — pode ser visto como resposta, ainda incipiente, reafirme-se, às estupidezes como a de Getúlio Vargas. Em 1941, o então ditador assinou decreto proibindo o futebol feminino no Brasil, considerado — pasmem — “incompatível com as condições da natureza feminina”. Ele seria revogado apenas em 1979, nove anos depois de Carlos Alberto Torres erguer a Jules Rimet para os homens pela terceira vez.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851