É desagradável, mas necessário dizer. Nem tudo, no espetáculo comovente da Paralimpíada, é tão emocionante e bonito quanto parece. Uma reportagem do jornal americano The Washington Post passeia por uma faceta ruim, embora vigiada com esmero, da competição: o chamado “doping de classificação”. Funciona assim: os atletas alegam ter determinadas deficiências, são listados em alguma categoria mas, na verdade, não deveriam estar ali, por ostentarem condições mecânicas e anatômicas melhores. É uma trama complexa, pela qual passam os que desejam enganar para vencer. Nas olimpíadas, a prova de 100 metros rasos do atletismo, por exemplo, tem duas únicas disputas: uma feminina e uma masculina. Simples assim. No caso das Paralimpíadas, há 16 classes para eles e 13 classes para elas. Em alguns casos, há clareza nos critérios, mas em outros, não. A ambiguidade abre a janela para os espertalhões.
A reportagem do The Washington Post ouviu uma dezena de atletas de esportes tão diversos quando o rúgbi em cadeiras de rodas, ciclismo, natação e basquete em cadeiras de rodas. O veredicto: o Comitê Paralímpico Internacional aperfeiçoa os métodos de classificação, há permanente zelo, mas ele é incapaz de barrar todas as armadilhas. E brotam, portanto, suspeitas de classificações injustas, pondo lado a lado quem não poderia estar lado a lado. A caminhada é longa, e dá-se o aprendizado por meio de sustos e reclamações.
Na recente Copa do Mundo de ciclismo de estrada paralímpico, em Maniago, na Itália, realizada em maio, o canadense Charles Moreau e cinquenta de seus companheiros de prova deram uma breve parada para protestar contra um sistema que eles dizem permitir trapaça – e então seguiram a corrida, debaixo de aplausos do público. A manifestação ampliou um tópico que deixou de ser comentado ao pé de ouvido para ganhar relevância, dado o crescimento das Paralimpíadas: a de concorrentes que multiplicam a gravidade de suas deficiências para obter alguma vantagem indevida.
A americana Oksana Masters deixou um orfanato perto de Chernobyl, na Ucrânia, para fazer história como uma das grandes campeãs paralímpicas, tanto nos Jogos de Inverno quanto nos de verão. Especialista em esqui, remo e ciclismo, ela nasceu com hemimelia tibial, com pernas de comprimentos diferentes e sem tíbias. Tinha seis dedos em cada pé, antes de uma série de cirurgias, e apenas um rim. Dona de 17 medalhas paralímpicas, ela vai direto ao ponto: “Os espectadores veem os Jogos Paralímpicos como um evento sem muita competição, com tudo muito inspirador, mas não é exatamente assim. Os adversários riem, celebram-se, mas se os torcedores soubessem o que há por trás de portas fechadas, ficariam chocados”.
A GRANDE FARSA
O mais vergonhoso episódio de contrafação paralímpica aconteceu nos Jogos de Sydney, em 2000. A equipe de basquete masculino para portadores de deficiência mental da Espanha, que levaria o ouro com facilidade, era uma seleção de impostores. Apenas dois jogadores tinham alguma dificuldade – os outros mentiram. A denúncia foi feita, logo depois da competição, com estardalhaço e sobejas provas, pelo repórter Carlos Ribagorda, que fazia parte da equipe, na qual entrou para poder construir em detalhes a ruidosa reportagem que revelaria a farsa. Os atletas forjaram atestados. Fingiam problemas. Deixaram crescer cabelos e barba para esconder as feições. Segundo relato de Ribagorda, na estreia espanhola contra a China, o treinador pediu que os jogadores reduzissem a toada na quadra. “Rapazes, vamos desacelerar ou vão descobrir que vocês não têm nenhuma deficiência”, relatou o jornalista. “Passei cinco meses treinando sem nenhum jogador com deficiência por perto. Os dois que realmente tinham condições de estar ali só chegaram depois”, contou.
Depois do escândalo, as autoridades exigiram a devolução das medalhas e de 160 000 euros oferecidos como subsídio. Aplicaram, ainda, uma multa de 5,4 mil euros contra o presidente da confederação espanhola. Os controles do Comitê Paralímpico Internacional, desde então, foram aprimorados – e consegue, quase sempre, barrar a malandragem. Algumas, contudo, escapam do crivo. O arremessador de disco indiano Vinod Kumar levou o bronze na Paralimpíada de Tóquio, em 2021. Uma verificação posterior iluminou uma lorota. Ele teve a medalha subtraída e foi punido com dois anos de ausência de competições esportivas. O truque: Kumar foi inscrito na categoria F-52, para atletas com transtorno do movimento de alto grau no tronco, mãos e pernas, e de grau reduzido nos braços. Revelou-se que ele não poderia disputar a prova nesse grupo, por ter condições físicas mais aptas, com vantagens diante de seus adversários. As enganações, severamente combatidas, não tiram o brilho e a beleza das disputas – contudo, incomodam e, no final das contas, mostram serem todos humanos, demasiadamente humanos, com defeitos e deslizes éticos.