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José Bonifácio, o farol de sensatez de um momento histórico

O ministro nascido em Santos é o homem por trás da ideia de nação que brotou com a independência

Por Da Redação Atualizado em 4 jun 2024, 12h20 - Publicado em 3 set 2022, 07h00
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  • QUALIDADES - O ministro santista, de 59 anos: espírito audaz e orador envolvente -
    QUALIDADES – O ministro santista, de 59 anos: espírito audaz e orador envolvente – (Litografia de Sisson/.)

    O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.

    A história e o aparecimento dos novos museus, a tornar público os principescos tesouros antes vedados à nós, a plebe, ensinam que os grandes eventos de nosso tempo merecem registros para a posteridade. Não se trata de outra matéria o brado ouvido às margens do Ipiranga, Rubicão às avessas na turbulenta província paulista, com que nosso príncipe regente se opôs com firmeza ao jugo opressor das Cortes de Lisboa. Há de merecer tintas dramáticas a representação para a eternidade do instante em que dom Pedro reagiu, “laços fora!”, à intenção ultramarina de nos aferrar ao passado colonial — “algo que o ponha à sela de fabuloso Marengo”, se atreve o crítico de belas artes de VEJA, “tal qual Napoleão em A Batalha de Austerlitz, 2 de Dezembro de 1805. A magnífica tela de François Gérard foi festejada mesmo por seus inimigos no Salão de Paris em 1810!”.

    O que nos leva ao problema que enfrentamos aqui, não sem o temor de que mal nos interpretem (colegas do Correio do Rio de Janeiro sofreram com a mão pesada da Lei de Imprensa há duas semanas!): se não nos resta dúvida de que Sua Alteza Real estará de espada em riste, em seu melhor uniforme no alto de um garanhão, o que fazer com José Bonifácio de Andrada e Silva, o seu homem forte, se bem nos entendestes, verdadeiro farol nas brumas deste histórico momento, mas de talentos menos amáveis e atributos, digamos, menos plásticos? Que figura lhe fará justiça agora, à sombra dos gabinetes, sem deixar de projetar a estatura gloriosa que, sim, podemos afirmar, alcançará no futuro da nação que se agiganta?

    INTERLOCUTOR - José Bonifácio (à dir., em pé) no Conselho de Estado, no Rio: com Leopoldina -
    INTERLOCUTOR - José Bonifácio (à dir., em pé) no Conselho de Estado, no Rio: com Leopoldina – (Georgina de Albuquerque/Museu Histórico Nacional/.)

    Tememos que aos retratos do ministro dos Negócios do Reino e Estrangeiros, de 59 anos, escape a perspicácia do orador envolvente que faz dele um dos mais ativos interlocutores de Sua Alteza Real, dona Leopoldina, com quem circula pelo Rio de Janeiro em alemão fluente, apenas um entre os onze idiomas que domina à ponta da língua ou da pena. Nos inquieta que as pinceladas de um artista enfadonho reduzam o seu garbo à boca miúda e testa larga dos Andrada e Silva e seu espírito audaz, à inescapável circunspecção com que se portam os homens de sua estirpe. Sim, um espírito audaz. Testemunhos de pares de nossa confiança, que mui discretamente privaram de sua companhia na revoltosa Paris, em 1790, ao longo de suas viagens de formação, asseguram que seus hábitos eram, sim, os de um jovem aristocrata orgulhoso de sua condição, entregue às meias de seda, punhos de renda e fivelas de prata (e às cortesãs do Palais Royal!) — mas que ele não se furtou a ostentar às ruas uma insígnia com as cores da revolução que pôs abaixo a Bastilha e segue a ameaçar a pompa e a circunstância do absolutismo em toda a Europa.

    Que não se enganem os leitores! Não estaríamos aqui a discutir a justa medida de um elogio (pouco acadêmico) ao passado vice-presidente da Junta Provisória de São Paulo tivesse ele cumprido, sem fraturas na alma, o destino comum aos bem-aventurados formandos em Coimbra, encaminhados à sinecura no serviço público do Reino, garantidos os privilégios que fizeram a fortuna de seu pai e conferiram prestígio a seus irmãos. Não! Como ele próprio escreveu em Notas sobre a Organização Política do Brasil, como a espelhar em si os desafios do projeto que tem agora às mãos, “tudo é filho do tempo e das luzes. Os homens são entes sensíveis, e das circunstâncias, e não entes de razão ou ideias de Platão”. Vulto discreto a circular nas dobras da paisagem que aos poucos vai se constituindo, um retrato à sua altura deve dar a vê-lo como um produto de suas próprias contradições, em metamorfose, e não como o herdeiro acabado de uma tradição ruinosa desde o terremoto de Lisboa e o triunfo das ideias Iluministas mundo afora. Sim, caros leitores, um filho do tempo e das luzes! O que seria da sagacidade do maduro animal político de hoje não fossem os mercuriais impulsos da juventude, só apaziguados à custa da experiência acumulada em sua longa temporada em Portugal, onde se graduou em filosofia e direito em 1787, e nas aventurosas viagens exploratórias aos confins das nações amigas, que lhe granjearam como mineralogista o acesso às mais importantes academias científicas em atividade?

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    Senão, vejamos!

    ULTRAMAR - O ministro português Sousa Coutinho: promotor da modernização -
    ULTRAMAR - O ministro português Sousa Coutinho: promotor da modernização – (Biblioteca nacional digital de portugal/.)

    Ao aportar no Rio de Janeiro ao fim de 1819, depois de 36 anos sem ouvir as aves que aqui gorjeiam como em nenhum outro lugar, o fiel servidor do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves contava com os vencimentos da aposentadoria de três dos muitos cargos que ocupou, da inaugural cátedra de metalurgia na Universidade de Coimbra à chefatura de polícia e à superintendência da alfândega e da Marinha no Porto, passando pela direção do serviço secreto português ao apagar das luzes da ocupação napoleônica. Chegou em companhia de sua amantíssima senhora, a irlandesa Narcisa Emilia O’Leary, e de duas de suas filhas, a caçula Gabriela Frederica e Narcisa Cândida, fruto de um de seus muitos relacionamentos extraconjugais — Carlota Emília, a primogênita, permaneceu em Portugal, casada com o herdeiro de seu mestre em Coimbra, o naturalista italiano Alexandre Vandelli. Na bagagem, uma biblioteca de 6 000 livros e uma formidável coleção de minerais, entre os quais as quatro espécies que descobriu e descreveu quando enviado em missão científica aos países escandinavos. Na consciência, um certo enfado associado ao desencanto com a burocracia do Reino, em si própria um obstáculo jamais vencido nas tarefas que assumiu com o objetivo de modernizá-la. Um probo servidor público sem o reconhecimento sequer financeiro de seus esforços! O retorno aos trópicos era ansiado como um antídoto contra o temor de “cair em inteira misantropia”, escrevera certa vez ao ministro de Ultramar Rodrigo de Sousa Coutinho, fervoroso promotor da modernização da Coroa e um de seus maiores admiradores no governo. “Estou doente (reumatismo e hemorroidas, dizem à boca pequena), aflito e cansado, não posso com tantos dissabores e desleixos. Logo que acabe meu tempo em Coimbra e obtenha minha jubilação, vou me deitar aos pés de Sua Alteza Real para que me deixe acabar o resto de meus cansados dias nos sertões do Brasil e cultivar o que é meu.”

    Entretanto, hoje sabemos que não foi assim que aconteceu!

    Depois de dois atribulados meses na sede do Reino — “não me deixavam em todo o dia desde as 8 da manhã até as 11 da noite um momento livre para descarregar ao menos o intestino reto”, queixou-se em carta ao amigo Joaquim José da Costa Macedo —, embarcou para Santos, página virada em sua história aos 14 anos de idade, enviado a estudar com os padres mais cultos de São Paulo. Seu pai, Bonifácio José de Andrada, a maior fortuna da cidade em seus melhores dias, já estava morto desde 1789, mas sua mãe, Maria Bárbara da Silva, aos 80 anos de idade, o conduziria “a um tropel de sensações e afetos novos para minha alma”, como confessou a Costa Macedo. “As árvores debaixo de cuja sombra outrora descansara da caça, fontes em que na meninice matara a sede, a casa, alguns amigos e parentes do meu tempo (…), tudo me transportava de modo que andei por dias (…) reduzido a ser todo sentidos e coração.”

    INSPIRAÇÃO - A Batalha de Austerlitz, por Gérard: merecerá algo assim dom Pedro? -
    INSPIRAÇÃO – A Batalha de Austerlitz, por Gérard: merecerá algo assim dom Pedro? – (François Gérard/.)

    Mas a nostalgia que o tomou de assalto ao colo materno não empanaria por muito tempo a razão amadurecida nos anos a fio de confronto entre as ideias constituídas em Coimbra, à luz do reformismo ilustrado do Marquês de Pombal (“que teria a cabeça cortada obrasse ele em Paris”, alfineta o comentador de política de VEJA), e a consciência de seu tempo, conformada pelo oportunismo liberal. Tal qual o lugar que deixou colônia para reencontrar sede do Reino, também ele estava muito mudado — tinha um destino a cumprir! E dois recados importantes foram dados a quem estivesse atento. No sítio em que se meteu em Santos e na fazenda em Parnaíba onde pôs uma centena de reses a pastar, se cercou apenas de “gente livre e alugada”, como a dizer — os escravizados não apenas aviltam a dignidade humana, mas comprometem o desenvolvimento das nações, sobretudo as com que sonhava. E em relação à rumorosa prisão de seu irmão Antonio Carlos, ouvidor em Olinda, envolvido na rebelião republicana de Pernambuco, em 1817, o seu silêncio era um discurso completo — apesar do flerte juvenil com a maçonaria, pétrea era sua fidelidade à ideia de uma monarquia sóbria, mas intervencionista; centralizadora, mas aberta aos avanços do saber. “Firmam também as letras, senhores, os tronos dos reis justos e bons, fazendo amável e necessária a obediência”, escreveria ele em seu “Elogio acadêmico da senhora dona Maria I”, discurso na Academia de Ciências de Lisboa, em 1817, em ajuste de contas com a vida em Portugal. “Estou capacitado de que os grandes projetos devem ser concebidos e executados por um só homem, e examinados por muitos; de outro modo desvairam as opiniões, nascem as disputas e rivalidades; e vem a faltar aquele centro comum de força e unidade, que tão necessário é em tudo (…).”

    EM FAMÍLIA - O irmão Antonio Carlos: envolvido na rebelião de Pernambuco, em 1817 -
    EM FAMÍLIA – O irmão Antonio Carlos: envolvido na rebelião de Pernambuco, em 1817 – (Sébastien Auguste Sisson/.)

    Não é outro o homem que se pôs ao lado do príncipe regente neste momento enfarruscado pelos ventos que sopram das Cortes de Lisboa (para que se inteirem do pandemônio, recuem à pág. 18). Na esteira das instruções para organizar um governo local via eleições, o aclamado vice-presidente das plagas paulistas deu prova de suas convicções nas seminais “Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório da Província de São Paulo”, com o que estabeleceu as bases para forjar tal necessário “centro comum de força e unidade” — em torno de dom Pedro, no Brasil. Ainda que provoque desconforto com a defesa que faz da regulamentação da escravidão e da civilização dos índios, da necessidade de mudanças nas leis de propriedade agrária e na matriz exportadora da economia, da transferência da capital do Reino para o interior, entre outras medidas desconcertantes para a elite brasílica, Bonifácio tem sido a bússola mais firme neste nevoeiro em que o príncipe regente decidiu ficar — não se sabe se para sair dele aos pés de uma colônia acovardada ou à frente de um gigante pela própria natureza.

    Que não se frustrem os leitores com a modéstia da litografia do onipresente ministro dos Negócios do Reino e Estrangeiros, já célebre mesmo nos sertões mais distantes desta pátria em formação. Não há medo nem respeito em excesso! O que não há é recursos a pôr em tintas personagem tão complexo. Que cobrem às Missões Artísticas no Rio de Janeiro e aos museus do futuro um retrato como os que honram os grandes homens e acontecimentos do passado — à altura de José Bonifácio de Andrada e Silva, o patriarca, nos arriscamos a dizer, da ideia de Brasil.

    Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805

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