O americano Philip K. Dick (PKD) ficou conhecido por suas alucinantes ficções científicas. A loucura das páginas de Dick era, porém, apenas um reflexo da mente do escritor. Diagnosticado com doenças mentais e transtornos diversos como agorafobia e paranoia, Dick não procurava acalmar a mente. Ao contrário. Escreveu a maioria de suas obras sob o efeito de metanfetamina, a droga potente e viciante produzida por Walter White em Breaking Bad, e ainda teve no ambiente doméstico, conturbado por cinco casamentos difíceis, uma atmosfera capaz de alimentar sua instabilidade – instabilidade que o levou a uma internação voluntária em uma clínica de reabilitação e a algumas tentativas de suicídio.
Ao longo de uma vida agitada em que, segundo ele, chegou a ter experiências na roma antiga, K. Dick não teve as benesses do sucesso. O reconhecimento viria pouco depois da sua morte. O escritor morreu em março de 1982, três meses antes do lançamento de Blade Runner, filme de Ridley Scott inspirado no romance Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de 1968.
O filme se tornaria um dos maiores clássicos da história do cinema e faria do escritor uma fonte em que produtores e cineastas beberiam em busca de um novo blockbuster. E o livro se tornaria o propulsor de discussões de entusiastas da ficção científica a respeito do gênero, do futuro e até da religião mercerista citada na obra, uma criação de K. Dick que mistura elementos cristãos e budistas.
Ao menos quinze produções, entre longas-metragens e séries de TV, surgiriam a partir de Blade Runner com a obra de Philip K. Dick como base. Divisor de águas para a carreira do escritor, ainda que póstuma, o romance já tem uma edição especial de 50 anos programada para 2017 pela Aleph, editora voltada ao público nerd.
O gêmeo
Philip K. Dick teve seu primeiro trauma logo no segundo mês de vida. Sua irmã gêmea, Jane, nascida como ele em Chicago, em 1928, morreu de subnutrição – a mãe, Jack Dowland, não produzia leite suficiente e não houve substituição à altura. Philip cresceu sob a sombra não apenas da irmã, mas da lápide onde teve o seu nome marcado ainda bebê, quando a família definiu que, no dia em que morresse, seria enterrado junto a Jane no Cemitério Riverside, no Colorado.
Inexorável, a tragédia da primeira infância atravessa toda a obra do escritor. Muitos acreditam que ele teria reescrito a sua história no universo alternativo criado em O Homem do Castelo Alto, morrendo no lugar da irmã, por exemplo.
Na obra, a Alemanha vence a Segunda Guerra Mundial e o mundo mergulha em uma realidade mórbida, em que negros voltam a ser escravizados e judeus precisam se esconder sob identidades falsas. Nesse contexto, um escritor decide fazer um livro de ficção que reconta os acontecimentos de maneira diferente: um livro em que os Estados Unidos ganham a guerra. A inversão que põe em discussão o próprio conceito de realidade é tida, para fãs e especialistas na obra do escritor, como uma forma metafórica de refazer a história – a sua história.
O escritor também soube se valer da perda para firmar relações – em vez de se retrair. Segundo o francês Emmanuel Carrère, autor da biografia Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos (tradução de Daniel Lühmann, Aleph, 49,90 reais), a tragédia era contada por Dick como forma de criar assunto para conhecer gente na adolescência, já que o fato o tornaria mais interessante aos olhos dos outros.
No divã
Philip K. Dick começou a fazer terapia aos 14 anos. Ainda jovem, chegou a ser diagnosticado com agorafobia, medo de multidões, e esquizofrenia, doença mental que pode ser caracterizada pela alucinação visual e auditiva. Inteligente, estudava como funcionavam os testes psicológicos, como as manchas pretas de Rorschach, para tentar manipular os resultados.
A agorafobia, que melhorou com o tempo, voltava a perturbar o escritor em épocas de depressão. Assim como a paranoia, que explodia em momentos de crise e levava Dick a tecer teorias da conspiração – o que ajuda a explicar sua mente criativa.
K. Dick acreditava que era monitorado por instituições distintas, como o FBI, a polícia federal americana, e a russa KGB. Autoconfiante e grandiloquente, pensava muitas vezes ter desvendado uma grande verdade oculta da sociedade em um de seus livros e que, por isso, havia entrado na mira do governo americano.
Casamentos
Com extrema dificuldade de ficar sozinho, Philip K. Dick contraiu cinco casamentos. O primeiro foi aos 20 anos, com Jeanette Marlin, a namorada de 21 anos com quem perdeu a virgindade. Jeanette continua um mistério para os fãs. Não foram encontradas novas informações sobre a mulher, que nunca comentou sobre o relacionamento com o autor. O matrimônio durou apenas quatro meses, período marcado por brigas infantis, como uma intensa discussão sobre os discos de música clássica que Philip ouvia.
Dois anos depois, ele conheceu Kleo Apostolides, estudante da Universidade da Califórnia que mais tarde se tornaria uma revisora de livros. Menos de um ano depois, em 1950, foi morar com a jovem de ascendência grega, então com 19 anos, que era muito ligada ao movimento estudantil. O casal chegou a ser investigado, com direito a visitinhas de policias, por suspeita de adesão ao comunismo.
A relação com Kleo chegou ao fim em 1959, depois de um caso extraconjugal do autor com a viúva Anne Williams Rubinstein, de 31 anos, que se tornaria a sua terceira esposa. Foi durante esse casório, que durou seis anos, três a menos que o anterior, que Dick teve a sua primeira filha, Laura Leslie.
Além de uma família, Anne deu a ele o apoio necessário para escrever. Ela acreditou no potencial da ficção científica, gênero que à época era mais explorado em histórias para crianças e revistas sensacionalistas, e fez um acordo no qual, por quatro anos, o marido poderia se dedicar exclusivamente ao projeto do romance que tinha em mente. Anne alugou uma pequena casa para que Dick pudesse se isolar, usar drogas e se concentrar no trabalho. Ao final desse período, ele lançou o seu primeiro sucesso, o mencionado O Homem do Castelo Alto, publicado em 1962. O livro, que agradou à crítica, ganhou um Prêmio Hugo e é considerado, até hoje, um parâmetro distopias.
Pode-se dizer que K. Dick estava bem treinado: antes do livro, ele havia publicado oito volumes, escrito outros onze que dormiam na gaveta, e também feito artigos para as tais revistas sensacionalistas que se interessavam por ficção científica. Sua produção, que ao final da vida totalizaria 44 livros publicados, começou na década de 1950.
Ao casamento com Anne, Philip emendou um relacionamento com uma jovem psicóloga de 19 anos chamada Nancy Hackett. Com ela, foram mais seis anos de matrimônio e outra filha, Isolde Freya. Hoje conhecida como Isa Dick Hackett, Isolde é produtora de cinema e trabalhou nas adaptações das obras do pai, incluindo Os Agentes do Destino (2011).
“Tive um período muito interessante em 1970, quando minha esposa, Nancy, me deixou e foi embora com um Pantera Negra, para minha grande surpresa. Por causa disso, caí bem fundo. Quero dizer, rolei pela sarjeta e vaguei pelas ruas atordoado, totalmente chocado quando isso aconteceu”, contou anos depois K. Dick à Twilight Zone Magazine.
O quinto casamento viria já no ano seguinte à separação, em 1973, quando Dick se uniu a Leslie Busby, a Tessa, de apenas 18 anos. A professora de inglês e escritora aceitou morar com o autor após uma única noite de amor. Os dois tiveram Christopher Dick em julho do mesmo ano. O casamento seguiu até 1977, quando Tessa o deixou, já exausta das crises paranoicas do homem, então com quase 50 anos.
“Tive uma infindável sucessão de divórcios, todos resultantes de casamentos feitos de forma inconsequente e afobada”, ponderou depois o autor à Twilight Zone Magazine. “Ainda mantenho um bom relacionamento com minhas ex-esposas. Aliás, a minha mais recente ex-esposa – são tantas que preciso manter uma relação numerada – e eu somos ótimos amigos.”
Nos intervalos em que se viu sozinho, Philip caiu em depressão e intensificou o consumo de drogas. Depois da separação de Tessa, tomou 700g de brometo de potássio e dormiu. Quando voltou à consciência, tinha o número da emergência anotado na mão, cuidado que tomou antes de cair no sono. PKD fez a ligação, foi socorrido em casa e levado ao hospital, onde se recuperou.
Um episódio semelhante aconteceu na noite em que Tessa deixou a casa de Dick. O autor ingeriu 49 comprimidos de digitoxina, 30 cápsulas de Librium e 60 de Agresoline em meio a uma garrafa de vinho. Em seguida, cortou os pulsos e se deitou no chão da garagem, com o carro ligado. Uma falha fez com que o motor do veículo morresse e Dick, talvez despertado pelo carro, decidiu ir para cama. Uma equipe de médicos de emergência invadiu a casa pouco depois, alertada, pelo farmacêutico que vendeu ao escritor os comprimidos, de que algo ruim poderia acontecer.
Drogas
K. Dick ficou conhecido como o autor do LSD. Suas obras, com mundos alternativos e tramas de traços paranoicos, foram escritas no período em que o ácido era descoberto e experimentado pelos jovens, ao ritmo da contra-cultura dos anos 1960 e 70. Apesar da fama, PKD fez uso da droga apenas uma vez em dezembro de 1964, quando teve uma “bad trip” – termo usado quando o usuário entra em um estado psicológico confuso e desagradável, do qual tem dificuldade de sair.
A droga mais consumida pelo escritor era mesmo a mentanfetamina, com a qual produziu a maioria das suas obras. A mentanfetamina o ajudava a permanecer acordado, “ligadão”, e escrever por várias horas seguidas, sem esmorecer.
Após a primeira tentativa de suicídio em 23 de março de 1972, na sequência da separação de Tessa, Philip K. Dick se internou em uma clínica de reabilitação, a X-Kalay, no Canadá, centro dedicado a usuários de heroína. Apesar de nunca ter sido viciado na droga, o autor optou pelo lugar para enfrentar dias de abstinência total.
Depois de duas semanas, foi promovido da função de lavar privadas na clínica para a de relações públicas do local, já que sabia digitar em uma máquina de escrever. Com um mês no lugar, decidiu que era hora de voltar aos Estados Unidos, e se instalou em Los Angeles no final de abril do mesmo ano.
2-3-74
Uma visita mudaria a vida de Philip K. Dick para sempre, em março de 1974. Ao receber uma entrega de medicamentos em casa, o autor se deparou com uma entregadora que possuía um colar com um pingente em formato de peixe, símbolo usado pelos primeiros cristãos, de acordo com a própria mulher. A joia refletiu uma luz rosa que teria causado alucinações em PKD e conduziria transformações no corpo do autor.
A partir daí, Dick viveria diversos acontecimentos que ele intitulou de “2-3-74”, números que representam os meses de fevereiro e março daquele ano. Segundo relatou, ele acordou várias vezes no meio da noite falando línguas mortas, como latim e grego, com as quais nunca havia tido qualquer contato.
As crises paranoicas de PKD pioraram depois disso. O autor passou a dizer que foi levado para o ano 70 d. C., na Roma Antiga, que permaneceria viva em uma realidade paralela. Philip se via como um soldado instalado secretamente no local e chegou a escrever, em suas anotações, que havia descoberto uma grande trama: nela, o Império Romano ainda dominava o mundo e tinha um acordo com o governo de Richard Nixon.
Em The Exegesis of Philip K. Dick, livro que reúne cartas e manuscritos ao longo de mais de 8.000 páginas escritas pelo autor após o incidente com o colar, ele alega que algo transferia informações de outras épocas e civilizações a ele, com grande velocidade. Dick passou então a defender a tese de que o universo estava conectado por meio de realidades paralelas através do espaço-tempo.
A experiência o teria inspirado a escrever a trilogia VALIS, sigla para Vast Active Living Intelligence System (vasto sistema de inteligência viva e ativa, em tradução livre). O romance apresenta um alter-ego de Dick e se mistura com relatos biográficos e digressões. A obra já foi interpretada como a fundação de uma nova religião e até uma experiência com extraterrestres, mas nunca se soube o verdadeiro intuito do autor.