Em tempos de coronavírus, a arte ficou a um clique de distância
Há ao menos esse lado bom na pandemia: musicais da Broadway e outras atrações proibitivas para parte do público agora estão disponíveis de graça online
Tenho muitos amigos apaixonados por musicais que, não por falta de vontade, nunca pisaram na Broadway. Para vibrar com O Fantasma da Ópera ou Hamilton no coração da Big Apple, é preciso ter “bala na agulha” – com ingressos salgados, viagem caríssima e o dólar nas alturas, a atração é um sonho distante para a maioria dos brasileiros. Ironicamente, graças à pandemia de coronavirus que parou Nova York e fechou todos os cinemas e teatros da cidade, o que antes era distante está agora a um clique de muita gente.
Andrew Lloyd Webber, o lendário compositor dos multipremiados O Fantasma da Ópera e O Mágico de Oz, irá disponibilizar semanalmente e de forma gratuita uma de suas produções pelo canal The Show Must Go On, no YouTube. A primeira a chegar ao público é Joseph and the Amazing Technicolor Dreamcoat, produção do ano 2000 que ficará disponível por 48 horas, a partir de hoje. Na tentativa de atenuar o sofrimento da quarentena, a plataforma de streaming Broadway HD também liberou o seu catálogo gratuitamente por 7 dias para aqueles que se cadastrarem no site.
No Brasil, o YouTube é usado pelos roteiristas Charles Möeller e Claudio Botelho para disponibilizar peças online. O Grupo Galpão e a Cia dos Autores também aderiu à iniciativa, assim como muitos outros autores e companhias que levaram o teatro ao público em tempos de quarentena. Há de se lembrar que a ida ao teatro não é um hábito cotidiano para o brasileiro. Segundo uma pesquisa divulgada pelo SESC em 2014, 61% da população do país nunca tinham assistido a uma peça de teatro até aquele ano. Apesar da oferta de sessões populares, é provável que o custo dos ingressos seja um dos motivos para isso. A ironia, portanto, reside no fato de o fechamento dos teatros, no Brasil ou na Broadway, tê-los tornado mais acessíveis do que quando estavam todos de portas abertas. Se as pessoas não podem ir ao espetáculo, o espetáculo tratou de ir até elas – inclusive àquelas que não estariam tradicionalmente sentadas nas cadeiras.
Neste ponto, peço desculpas de antemão aos afetados pela pandemia. Não me entendam mal, a situação é grave e só há a lamentar em meio ao caos na saúde pública em muitos países e à contagem de milhares de mortos. A própria indústria cultural vem passando por um cataclisma sem precedentes. Segundo um censo realizado pela Abrape (Associação Brasileira de Promotores de Eventos), 92% dos associados relataram prejuízos que somam R$ 290 milhões apenas com cancelamentos de shows e eventos como os musicais, com estimativa de bater a casa dos bilhões levando em conta toda a cadeia produtiva do setor. Apesar disso, há de se reconhecer que o coronavírus instaurou também uma solidariedade admirável no mundo, em especial na cultura.
No Instagram, artistas concorridos como os sertanejos Gustavo Lima e a dupla Jorge e Matheus, que costumam cobrar altas cifras por seus shows super produzidos, levaram música para a sala de casa com lives no instagram. E até a tradicional e aristocrática música erudita teve de se curvar à excepcionalidade do momento – de portas fechadas, todas as terças e quintas-feiras, até o dia 16 de junho, a OSESP disponibiliza na página do YouTube da Sala São Paulo concertos marcantes de sua história, acessiveis a quem desejar. Se fossem pagar por todos os shows e atrações disponíveis gratuitamente nas últimas semanas, muita gente acabaria sem salário, ou nunca teria acesso a tudo isso. É possível extrair algo de positivo do drama do coronavírus.