Para uma adolescente nascida no sertão da Paraíba, se tornar médica sempre pareceu um sonho muito distante, quase impossível. A realidade da região, marcada pelos contrastes sociais, com pouca oportunidade de estudo e trabalho, se impõe de tal forma que qualquer um ali duvida da própria capacidade. Mesmo assim, nunca deixei de acreditar que eu poderia vencer neste cenário de escassez. Hoje, depois de prestar o Enem e conseguir ingressar no curso mais concorrido do país, entendo que meu esforço de anos valeu a pena. Passei em medicina na Universidade de São Paulo e, para minha surpresa, apareci no topo do ranking, em primeiro lugar. Nunca imaginei nada igual. Mas sei bem quão longa e extenuante foi a jornada para chegar lá.
Desde muito cedo, pensava em ser médica. Me intrigava o funcionamento do corpo humano. Vivia com a mente mergulhada em questões do tipo: Por que sonhamos? Por que precisamos nos alimentar? Como se formam nossas memórias? Esses mistérios me fascinavam. Buscava respostas em um antigo livro de anatomia que ganhei aos 8 anos e virou um companheiro inseparável. Folheá-lo me transportava para um mundo em que eu me via cuidando de pacientes, ajudando as pessoas. Certa vez, li uma notícia sobre uma superbactéria que se espalhava por São Paulo e decidi reunir os amigos na biblioteca da escola para tentar achar a solução para aquilo. Para mim, logo ficou claro que teria de estudar, e muito, para resolver problemas dessa complexidade. Felizmente, Cajazeiras, a cidade onde nasci, a 500 quilômetros de João Pessoa, tem um Instituto Federal de Ensino, instituição pública reconhecida pela qualidade. Após uma superseleção, consegui a vaga para cursar lá a etapa final da escola.
Era início de 2020, estava no 1º ano do ensino médio e não havia tido nem duas semanas de aula quando a pandemia eclodiu, suspendendo a lição presencial. Morri de medo de ficar atrasada nos conteúdos e passei a estudar por conta própria com ajuda das videoaulas de uma plataforma virtual, um universo totalmente novo. Minha rotina se tornou ultrapuxada, já que tinha de equilibrar as atividades do colégio com o que aprendia via internet. Mesmo quando as aulas voltaram ao formato original, não deixei o turno duplo. Às vezes, acordava às 5 da manhã, estudava até as 7, e ia à escola, de onde voltava quase às 5 da tarde. Ficava cansada, claro, mas mesmo assim esticava o tempo entre meus livros até umas 9 da noite. Nesse esquema, não teve jeito: minha vida social ficou comprometida. Meus amigos me chamavam para sair, mas sempre tinha uma lista de exercícios para fazer. Meus pais se preocupavam com minha saúde mental, diziam que eu estava exagerando. Nada, porém, abalava minha determinação, aquela que você tem quando sabe o que quer.
Vira e mexe me batia uma insegurança. Era como uma montanha-russa. Em certos momentos, me sentia confiante, noutros minha autoestima desmoronava. Por mais que estudasse, talvez não fosse suficiente para conquistar uma vaga no mais concorrido curso do país. Dormia e sonhava com a prova. A única coisa que me relaxava um pouco era tocar violão. Assim me desligava por alguns momentos. Na véspera do derradeiro dia do Enem, fiquei nervosa, mal preguei os olhos e fiz o exame cansada. Achei que não tinha ido tão bem. Até o resultado sair, foram dias de intensa ansiedade. Quando ele finalmente veio, quase caí para trás: tirei 980 (em 1 000) na redação, 893,4 em matemática e 713,9 em linguagens, pontuações muito acima da média. Embora pudesse ir para São Paulo, optei por estudar na Federal da Paraíba. O custo de vida e a proximidade com a família acabaram pesando na escolha. Meus pais vivem com a renda de uma aposentadoria. Se não fosse pelas cotas sociais e por um ensino público de bom nível, jamais teria conseguido. Sonho em trabalhar no SUS e ser cirurgiã na área de neurologia. Sei que ainda tem muito estudo pela frente. Que os livros me aguardem.
Maria Clara Lira em depoimento dado a Ricardo Ferraz
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831