Eles estão com medo
Pesquisa aponta um cenário vergonhoso e de barbárie: crianças e adolescentes brasileiros não se sentem seguros nem enquanto estudam no colégio
E.S.S., de 17 anos, mora no bairro Jardim Palmares, no município de Nova Iguaçu, no Estado do Rio. Desde 2016 ela estuda em um colégio público da região, mas, antes disso, passou um ano fora da escola. O motivo que a levou a não querer mais sair de casa para assistir às aulas foi um problema que, com uma cruel persistência, afeta o cotidiano fluminense: a onipresença da violência, que não respeita nem mesmo o ambiente estudantil.
Aos 13 anos, enquanto fazia o caminho de todos os dias para o colégio, E.S.S. percebeu que estava sendo seguida por um homem. Apavorada, entrou em um posto de saúde. Ao voltar para casa, pediu para deixar a escola.
O episódio foi, na verdade, a gota d’água de um oceano de abusos: bullying dos colegas e agressões verbais de professores — que chegaram ao cúmulo de chamá-la de burra — tiraram de E.S.S. a vontade de estar em sala de aula. Hoje, mesmo frequentando outra instituição pública de ensino, localizada também em Nova Iguaçu, a adolescente ainda é assombrada pelo espectro da violência.
E.S.S. faz parte de um universo de quase 4 000 estudantes brasileiros, com idade entre 9 e 17 anos, entrevistados pela ONG Visão Mundial, fundada nos Estados Unidos em 1950, para uma pesquisa à qual VEJA teve acesso com exclusividade. O estudo “Infância [des]protegida” — que será lançado na terça-feira 28 em Brasília, no Seminário da Rede Nacional de Enfrentamento ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes — foi realizado com o objetivo de radiografar a percepção de segurança de crianças e adolescentes que frequentam escolas no Brasil. A pesquisa, feita entre agosto e setembro de 2018 — antes, portanto, do massacre de Suzano, que vitimou cinco jovens alunos de um colégio naquela cidade paulista em março deste ano —, abrangeu 67 instituições de ensino, em seis estados e sete municípios, com alunos do 5º ao 9º ano. Enquanto 78% dos entrevistados disseram sentir-se seguros dentro de casa, mais da metade dos participantes — 52% — declarou não se sentir protegida no colégio (leia outros dados da pesquisa no quadro ao lado). Nova Iguaçu, o município onde E.S.S. vive, teve o pior resultado entre as cidades analisadas. “Nossas aulas são canceladas constantemente por causa de situações de violência e perigo”, disse a adolescente em entrevista a VEJA. Ela relatou que os constrangimentos que sofreu em classe estão longe de ser exceção: vários de seus colegas também já passaram por bullying, e um dos professores chegou a dizer em sala que os alunos tinham “algum grau de autismo” por não conseguirem entender as matérias.
“O resultado da pesquisa que fizemos reflete a urgência de colocar a escola como um espaço de diálogo, de formação cidadã e de escuta das crianças. O colégio precisa cumprir esse papel social. Viver exposto à violência gera um stress que tem impacto negativo no desenvolvimento das crianças e dos adolescentes e até mesmo na capacidade de aprendizagem”, afirma a sanitarista pernambucana Karina Lira, uma das coordenadoras do estudo.
Assim como E.S.S. vivencia um conjunto de manifestações de violência em seu dia a dia, a escola situada em local de vulnerabilidade social está presa em uma rede de fatores adversos. “A instituição de ensino não é uma ilha. O aluno traz com ele os problemas que encara no ambiente doméstico e que absorve da violência urbana. Sai de casa para estudar e presencia tiroteios, assaltos, tráfico, assassinatos etc. A comunidade escolar tem de estar preparada para todos esses problemas”, acrescenta Karina.
Em junho do ano passado, no Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, foi baleado por policiais no caminho para o colégio. O garoto recebeu atendimento no pronto-socorro, porém não resistiu. “Bandido não carrega mochila”, lamentou sua mãe, Bruna Silva. No começo deste mês, o governador do Rio, Wilson Witzel (PSL), foi criticado por sobrevoar de helicóptero a cidade de Angra dos Reis com o objetivo de dar o aval a snipers para atirar, a pretexto de combater bandidos. Como forma de proteção, o Projeto Uerê, uma escola para jovens com bloqueios cognitivos e emocionais localizada na Maré, instalou uma placa no telhado para identificar o local: “Escola. Não atire”. Na instituição, desde 2017 os alunos têm treinamento para se proteger em caso de tiroteio.
No tristíssimo catálogo de episódios de violência que o Brasil exibe, o registro recente que mais chocou o país foi sem dúvida o que ocorreu na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, dois meses atrás. Uma dupla de atiradores, Guilherme Taucci Monteiro e Luiz Henrique de Castro, ambos ex-alunos daquele colégio, entrou na instituição e matou cinco estudantes e duas funcionárias. Depois das cenas de horror, cercados por policiais militares da força tática, um dos atiradores matou o comparsa e em seguida cometeu suicídio. Para Karina, não há como estabelecer uma relação direta entre o caso de Suzano e as percepções identificadas na pesquisa da Visão Mundial. Fatores emocionais e psicológicos estariam também envolvidos no episódio, contudo não há dúvida de que a escola absorve o clima de violência da região. Seja como for, segundo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, nos últimos cinco anos foram registrados 225 522 boletins de ocorrência em estabelecimentos educacionais do estado — uma média de 123 crimes por dia.
Por mais que a análise mostre um cenário obscuro, sem esperança, das condições de vida de boa parte das crianças e adolescentes que representam as próximas gerações do país, o estudo da ONG conclui que o fortalecimento das instituições e de políticas públicas pode ser a solução para proteger os mais vulneráveis. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, já traz garantias básicas de seus direitos — como receber educação de qualidade, ter acesso à cultura, poder brincar com colegas da mesma idade, não ser obrigados a trabalhar e não sofrer agressões físicas ou psicológicas por parte daqueles que são encarregados de instruí-los ou de qualquer outro adulto.
E.S.S., que teve sua história ouvida no levantamento da Visão Mundial, surpreendeu-se até com o fato de ter sido abordada. “Foi a primeira vez que perguntaram a nossa opinião. Interessante, porque mostrou que nós também temos o direito de falar sobre o que pensamos e sobre o que passamos. Temos o direito de nos expressar.”
Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636
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