Há pelo menos dois séculos, quando emergiu o modelo de escola que persiste até hoje, a rotina da criançada vem sendo muito parecida: acordar, tomar café, ir para o colégio. Mas aí a devastação provocada mundo afora pelo coronavírus trouxe ao vocábulo cotidiano o isolamento social. E os portões tiveram de se fechar (por força da lei, em grande parte dos casos). Estima-se que mais da metade da população estudantil do planeta esteja longe das carteiras escolares e, em um ciclo que ninguém conseguiria prever semanas atrás, começou a ter aulas em casa, como acontecia no passado remoto. Estes tempos ultraconectados, porém, tornam tudo diferente — e uma parcela da turma em quarentena segue a toda no universo do ensino on-line. No Brasil, o movimento é mais acentuado entre escolas particulares, que já tateavam a educação pelas redes, mas também está presente em diversas públicas, que correm para tentar amenizar os estragos do vírus no ano letivo. Ao todo, pelo menos 38 milhões de estudantes se encontram hoje reclusos, uma reviravolta para professores, pais e alunos, que precisam se adaptar às pressas.
Transformar a casa em escola demanda vários tipos de ajuste, a começar pelo mais básico: o rearranjo das funções dos cômodos e a preservação do silêncio no lar. O professor Leandro Freitas viu-se às voltas com o desafio de ensinar semelhança de triângulos a alunos do 8º ano do ensino fundamental sem o uso de sua preciosa lousa nem o contato visual com a turma. “Quando olhei para a parede de azulejos da copa, branquinha, pensei: é aqui que vai ser a partir de agora”, conta o matemático, que engatou mais seis aulas até agora, visualizadas em tempo real por sua classe do Colégio Liessin, no Rio de Janeiro. A escola, a exemplo de outras, está preservando na medida do possível a rotina pré-vírus, com as aulas dadas nos mesmíssimos horários e até intervalo para o recreio. Tudo transcorre no ambiente do Google Classroom, uma das plataformas já adotadas por vários colégios para reforçar os estudos no ambiente virtual. Agora, ela e outras, como a Plurall e a Descomplica, passaram a ser, em muitos casos, o único canal pelo qual os mestres se comunicam com a garotada, propõem exercícios à tropa confinada e corrigem a lição.
A nova realidade impõe a todas as partes envolvidas altas doses de disciplina. “Na primeira semana observamos que 20% dos alunos faltaram. Hoje as salas estão completas”, festeja Célia Saada, diretora do Liessin. Concentração na frente do computador, com um monte de pequenos acontecimentos no entorno (uma TV ligada, um telefone que toca), é também um aprendizado. “Lutar contra a distração em casa não é fácil”, reconhece Artur Leal, do 2º ano do ensino médio do colégio Anglo, de São Paulo, que adota a Plurall. A escola é uma das que estão testando ensinar em tempo real. Outras, como a Luminova, disponibilizam as aulas gravadas e deixam os professores de plantão no exato período em que estariam ministrando a lição entre quatro paredes. Artur sente falta do que só a educação ao vivo e em cores oferece: interação em grau máximo. Justamente por isso especialistas sugerem que os estudantes abusem de grupos de WhatsApp para discutir a matéria (ocupar a tela com Candy Crush não vale). Mas, dica das dicas, nada de ficar ligado nas redes sociais, que naturalmente minam a atenção.
Os tropeços iniciais neste admirável mundo novo já trouxeram algum aprendizado. “No começo, a plataforma saía do ar e a carga de tarefas era tanta que pedimos à escola que desse uma desacelerada nesta fase de adaptação”, diz Fabíola Kempis, representante de um grupo de pais da Escola Luminova, de São Paulo. A ficha de que, afinal, não são férias está caindo aos poucos, e professores relatam quanto têm se esmerado para manter o ânimo da meninada. “Tomo cuidado redobrado com as lições gravadas. Quero que sejam curtas e ao mesmo tempo interessantes”, diz o professor de história Vinícius de Paula. Sem saberem por quanto tempo se estenderá o confinamento, os colégios já começam a debater formas de avaliar a turma em casa. Existe um consenso de que a prova tradicional não se amolda à nova realidade. “Temos de avaliar a capacidade de dissertação e pesquisa do aluno, desenvolvendo métodos que evitem a cola”, acredita Vinícius.
Os processos estão sendo lapidados pelas escolas ao mesmo tempo que as aulas a distância se desenrolam — isso quando acontecem. Muitas instituições não estavam preparadas para o sacolejo e agora aceleram para abraçar o ensino on-line e não parar. “Recebemos um monte de telefonemas diários de diretores em busca de um colete salva-vidas, querendo implantar a jato o ensino a distância”, relata Marco Fisbhen, CEO do Descomplica, que prevê um aumento de 50% nas próximas semanas. Nas escolas públicas, entram em jogo questões ainda mais básicas. Para que alunos sem acesso à banda larga não fiquem de fora, a busca é por conteúdo que possa ser baixado e visto off-line. “Estamos neste momento treinando professores para que aprendam a mexer na plataforma que vamos adotar”, diz Pedro Fernandes, secretário estadual de Educação do Rio de Janeiro. Em São Paulo, o material digital que seria usado para reforço é adaptado para manter as aulas (a distância, claro) nos colégios do estado a partir de 22 de abril.
A temporada em casa tem o potencial de afiar nas crianças algumas habilidades deste século XXI, como independência para percorrer sozinhas os caminhos do conhecimento, senso de cooperação em meio à dificuldade e resiliência. No material que disponibilizou aos alunos, a escola Eleva, no Rio e em Brasília, curiosamente incluiu aplicativos de ioga e meditação. A ideia é manter o espírito apaziguado e seguir firme. A dona de casa Rosângela Neufeld vê germinar sob seu teto um interessante movimento de camaradagem: os filhos, Eric, 7 anos, Raul, 10, e Cássia, 13, estão começando a ajudar uns aos outros, ainda que com as tensões esperadas pelo convívio em excesso. Outro dia, a mais velha prestou providencial socorro ao caçula na lição. “Até eu estou reaprendendo a estudar”, diz a mãe. Não estamos todos?
Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680