O tão temido Enem, passaporte para ingressar na maioria das universidades do país, se avizinha, logo ali em novembro, mas para uma turma de brasileiros a ansiedade gira em torno de outro grande e decisivo acontecimento: eles estão de malas prontas para fazer faculdade no exterior. Esses jovens embalam uma tendência que já vinha tomando corpo nos últimos anos, com a ascensão da ideia de que, além de uma segunda língua, a experiência estudantil longe de casa ajuda a dar estofo para que se convertam em cidadãos do mundo. A pandemia, sempre ela, contribuiu para turbinar o movimento — no isolamento, muitos jovens curiosos experimentaram aqueles cursos livres das faculdades de fora, a distância mesmo, e, quando as aulas voltaram a ser presenciais, as próprias instituições estimularam as matrículas dos estrangeiros. Resultado: em 2020 aumentaram em 41% as inscrições de brasileiros no Common Application, sistema de admissão usado por 900 universidades americanas — e não param de subir.
O vasto acesso às plataformas digitais de universidades no exterior, ainda que de forma despretensiosa em meio às incertezas trazidas pelo novo coronavírus, abriu a pais e alunos brasileiros uma janela para o exterior antes mais longínqua. Eles passaram a encarar com maior naturalidade o desafio de estudar longe de casa e começaram a caçar possibilidades, inclusive na seara de faculdades menos famosas, mais acessíveis e de bom ensino. Estas, por sua vez, dão boas-vindas a gente de variadas nacionalidades para compensar as perdas recentes: nos Estados Unidos, a queda foi de 603 000 alunos nos bancos universitários para o ano escolar que se inicia em setembro. “Diversas instituições derrubaram a exigência de que estrangeiros passassem por avaliações como o SAT, o que estimula o ingresso dos estrangeiros”, diz Simone Ferreira, orientadora do EducationUSA, que divulga o sistema de ensino superior americano.
Atualmente, cerca de 70 000 brasileiros fazem faculdade fora, e a procura dispara, entre outras razões, sob o impulso de programas de países desenvolvidos para atrair talentos de toda parte. “Estamos em busca de diversidade. Os estudantes brasileiros têm perfis muito diferentes e podem contribuir com visões múltiplas para os problemas globais”, avalia Simon Nascimento, brasileiro que estudou relações internacionais na Universidade de Chicago e dirige agora a área de admissões para graduação na instituição. É na UChicago, considerada o berço do neoliberalismo, que Vinicius Alvarez, 18 anos, começa no mês que vem o curso de economia e matemática. “Sei que ter esse diploma será um grande diferencial”, afirma Alvarez, que, como outros, nem chegou a prestar o Enem. “Sempre quis que meu filho fosse capaz de se virar e ter destaque em qualquer ambiente”, ressalta o pai dele, o empresário Thiago Alvarez.
Os Estados Unidos são, de longe, a meca dos brasileiros que procuram excelência cruzando fronteiras. Neste último ano, o estado que mais vem registrando matrículas é a Flórida, onde não há universidade de ponta, como nas costas Leste e Oeste. Preços variam imensamente — em instituições sem grife, custam em média o dobro de uma universidade particular no Brasil, com casa e comida incluídas e chances de bolsas para amenizar a conta. É preciso pôr tudo na balança e pesar custos e benefícios. Ao estudar em outro país, o jovem afia a capacidade de se adaptar a outras culturas, além de ganhar destreza em um segundo idioma. “Eles desenvolvem habilidades valorizadas no mercado de trabalho, como a de assumir riscos, encarar o novo e demonstrar empatia”, lista Ronaldo Mota, membro da Academia Brasileira de Educação. O carioca João Vitor Boechat, 17 anos, mostrou iniciativa ainda no processo de seleção: criador de um clube de robótica na escola, obteve bolsa integral para cursar engenharia elétrica na renomada Duke University, nos Estados Unidos. “Não imaginava conseguir estudar em uma das melhores universidades do mundo”, comemora.
Diante do interesse, colégios brasileiros tradicionais estão oferecendo turmas específicas a quem busca os ares acadêmicos de fora, com aulas preparatórias para exames internacionais, reforço na língua estrangeira e orientação vocacional. “Ao longo da preparação, percebemos os anseios dos alunos e os direcionamos para as universidades com que têm mais afinidade”, explica Edmilson Motta, coordenador-geral do Etapa, em São Paulo. Escolas no topo do ranking aplicam a metodologia International Baccalaureate, aceita mundo afora e um ponto altamente positivo no currículo do aluno estrangeiro. “No IB, além das áreas de conhecimento, abordamos projetos práticos, valores humanistas e questões globais”, frisa Marcio Cohen, vice-presidente pedagógico do Eleva, do Rio de Janeiro. Outra trilha percorrida com mais frequência para conseguir uma vaga fora são as escolas internacionais, que seguem o currículo do seu país de origem e dão os diplomas aceitos lá.
Ainda que facilitados nos últimos tempos, os processos de seleção seguem árduos e longos. Na maioria dos casos, exige-se um exame de proficiência em língua estrangeira, carta de recomendação, bom desempenho em redação e nas entrevistas. Notas altas nos exames nacionais, como o próprio Enem e o americano SAT, ajudam, mas não são decisivas, e atividades como participação em olimpíadas acadêmicas, serviço voluntário e esportes são muito bem-vistas. “Tive de fazer oito redações e entrevistas com dois professores, além de estudar intensamente francês e integrar clubes acadêmicos”, diz Gabrielle Balestra, 18 anos, que está de malas prontas para cursar relações internacionais na École Sciences Po, em Paris — depois de uma queda de braço, vencida pelos alunos, para que o governo francês afrouxasse os protocolos e aprovasse o visto para brasileiros. E assim a sala de aula sem fronteiras vai ficando a cada dia mais cheia.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752