Quando o sistema de cotas raciais aterrissou na universidade brasileira, lá se vão duas décadas, bebia da fonte da exitosa experiência implantada nos Estados Unidos em meio ao calor revolucionário dos anos 1960. Pois mesmo tendo um lastro em uma política pública que havia dado relevante empurrão para a formação de uma classe média negra, a ideia, então defendida por ONGs e uma ala de acadêmicos, inspirou uma série de temores no Brasil. Diziam que 1) alunos egressos do combalido ensino público não teriam condições mínimas para vencer os desafios de uma graduação; 2) a evasão explodiria; 3) a qualidade dos cursos despencaria; 4) o mérito seria definitivamente enterrado.
A reflexão sobre tais questões fazia sentido diante de uma reviravolta como a que a pioneira Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) implantava naquele 2002: uma reserva de 40% de suas vagas a negros. Logo foi seguida por outras, aqui e ali, até que o governo baixou uma lei há exata uma década obrigando todas as 103 instituições federais de ensino superior a separar a metade de suas carteiras a cotistas, o que agitou ainda mais as labaredas. A conclusão depois de já longa estrada, porém, é que o que parecia temerário não se confirmou e as cotas significaram, mesmo com suas imperfeições, um avanço inestimável ao abrir um leque de oportunidades a quem não tinha nenhuma.
Como determinado à época da implantação da lei, está prevista para este ano uma revisão dela, justamente para aferir se caminha na direção certa e se cabem ajustes no texto original. Não há uma alçada no Planalto encarregada da missão nem um estudo oficial dos resultados alcançados até agora, mas no Congresso tramitam trinta projetos que propõem alterações às regras. Uma leva deles, a maioria em mãos de parlamentares da base bolsonarista, faz coro em relação à retirada do filtro racial, defendendo a tese de que o único critério para a distribuição de cotas seja a renda dos estudantes. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), determinou que um dos projetos avance em regime de urgência — o que pede a extensão do prazo para tal revisão, alegando falta de dados para balizar uma avaliação séria. Mas o que a ala antigovernista realmente quer é deixar o assunto adormecido, para retomá-lo em um cenário que lhe seja eventualmente mais favorável, após as eleições de outubro. “Não podemos impedir retrocessos”, alerta o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), relator do projeto sob apreciação.
Na ausência de um estudo oficial, um conjunto consistente de pesquisas dá uma boa dimensão de como ficou a paisagem universitária brasileira com as políticas afirmativas. O resultado mais visível é o aumento do grupo egresso das faixas de renda mais baixas, que saltou de 2,7% para 16%, de acordo com um cálculo do doutor em educação pela USP, Adriano Senkevics. Já os negros, que representam 56% da população, atualmente ocupam mais da metade das vagas das federais, em salto extraordinário. A literatura enfatiza que, sim, há uma diferença nas notas do Enem, mas é pequena — em torno de 5% menores no caso dos cotistas —, e essa defasagem tende a se diluir ao longo do curso. Ou seja, o empurrão inicial não feriu a qualidade e conseguiu guindar uma parcela dos jovens de uma zona sem futuro. “Sem isso, jamais conseguiria romper o muro que me separava de uma vida melhor”, diz Irapuã Santana, 35 anos, integrante da turma inaugural de direito sob o regime de cotas na Uerj. Ex-morador de uma favela no Rio de Janeiro, ele fez pós-graduação na Universidade Yale, nos Estados Unidos, arranjou emprego no Supremo Tribunal Federal, onde foi assessor do ministro Luiz Fux, e hoje advoga.
O sistema de cotas em vigor destina, em primeiro lugar, a metade das vagas disponíveis a alunos vindos de escolas públicas, grupo sobre o qual se aplica a segunda peneira, que beneficia os mais pobres, e, só aí, vem o último dos filtros, que favorece os pretos e pardos seguindo a mesma proporção desse estrato da população em cada estado. É exatamente aí que reside a mais espinhosa e polêmica das questões: definir quem é negro em um país multiétnico e tão miscigenado, caldeirão que já abriu espaço para aberrações, como o famoso caso da UnB em que dois gêmeos idênticos se candidataram à cota e só um deles conseguiu. Vira e mexe pipocam histórias de gente que tentou burlar o sistema ao se declarar pardo mesmo sem ser, sobretudo em cursos mais concorridos. Para frear a malandragem, quase metade das instituições implantou comissões para analisar caso a caso — uma saída para lá de controversa, já que se limita à observação da aparência. “É complicado, mas fez com que as fraudes caíssem drasticamente”, afirma Joana Angélica da Luz, reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia. Estima-se que atualmente o problema incida sobre menos de 1% dos aspirantes a cotas.
O sistema, que hoje abarca meio milhão de jovens, vem se revelando uma boa alavanca para a mobilidade social. Um estudo da Fundação Getulio Vargas mostra que aqueles cotistas que passaram raspando na Uerj dez anos atrás têm 60% mais chances de obter sucesso no exame da OAB do que colegas que por muito pouco naufragaram no mesmo vestibular. A mãozinha na estreia da vida universitária fez toda a diferença, elevando em cinco vezes a possibilidade de exercerem a advocacia. “As cotas oferecem condições para um aumento fundamental na renda, mas não removem todas as barreiras”, observa a economista Fernanda Estevan, da FGV-SP. A distância entre brancos e negros persiste, tristemente, e só vai se resolver de forma maciça e generalizada se o motor da educação, desde os primeiros anos de ensino, funcionar para todos. Nesse cenário, as cotas deixariam então de ser necessárias e o país poderia, enfim, mudar de patamar.
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789