O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) nunca foi uma unanimidade entre os educadores. Criado para tentar reduzir o fosso que existe entre o ensino superior e a parcela mais pobre da população, o programa já financiou a graduação de mais de 3 milhões de estudantes em faculdades e universidades privadas. Ao lado do Bolsa-Família, é considerado umas das mais importantes ações sociais do governo federal, que, em duas décadas, investiu mais de 100 bilhões de reais em sua execução. Para este ano, mesmo com a crise provocada pela pandemia, o Ministério da Educação reservou para o Fies 500 milhões de reais de seu orçamento. O que se descobre agora é que, além dos estudantes, o programa também financiava a prosperidade de empresários, lobistas e burocratas do Ministério da Educação.
VEJA teve acesso a uma investigação realizada pela Controladoria-Geral da União (CGU). Ela revela que, durante anos, um grupo de faculdades e mantenedoras de ensino superior recebeu de forma ilegal mais de 1 bilhão de reais em recursos do Fies. De acordo com os auditores, o dinheiro era repassado pelo Ministério da Educação para bancar as despesas de alunos carentes selecionados pelo programa. O problema é que as instituições beneficiadas estavam impedidas de participar do programa por acumularem gigantescas dívidas junto à Receita Federal e ao Tesouro Nacional. Para conseguir burlar a proibição, elas contrataram escritórios de lobby, produziram documentos falsos e compraram o apoio de servidores do MEC. Segundo os auditores, 30% de tudo o que era repassado às entidades de ensino retornava para Brasília em forma de propina.
O resultado dessa investigação da Controladoria foi encaminhado à Polícia Federal, que abriu um inquérito para identificar os responsáveis pela fraude. No fim do ano passado, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, demitiu do cargo o coordenador-geral do Fies, Flávio Carlos Pereira. Ele é apontado pelos auditores como o responsável pela liberação dos processos irregulares. Uma semana antes da demissão, os investigadores realizaram buscas nas dependências do Fies, apreenderam computadores, celulares e documentos que estavam em poder do servidor e de seus assessores. Funcionário de carreira do Banco do Brasil, Pereira comandava o órgão desde 2012. A VEJA, ele confirmou a existência da investigação, disse que vai prestar todos os esclarecimentos no momento oportuno e afirma que não houve nem participou de qualquer irregularidade: “Nada foi feito sem respaldo legal”, garante.
Atualmente, o Fies acumula um prejuízo de 13 bilhões de reais, provocado pela inadimplência de alunos que solicitaram o financiamento e, depois de formados, não tiveram condições de pagar a dívida. Mas há uma suspeita ainda mais grave: estudantes-fantasma teriam sido usados para desviar os recursos, o que só a apuração da Polícia Federal poderá comprovar. As faculdades investigadas — vinte no total — são todas de pequeno e médio porte. A Fausb e a FCR Educacional, por exemplo, funcionam desde 2012 em Mato Grosso. Elas ofereceram cursos de graduação em direito, administração e ciências contábeis. Em cinco anos, receberam mais de 20 milhões de reais do programa. “Nós nunca forjamos nada”, garante Maria Aparecida Enes Andrade, sócia-administradora das duas instituições durante o período em que as irregularidades ocorreram. Aparecida não é caloura nesse ramo. Em 2019, ela foi flagrada tramando com professores uma forma de burlar o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) — uma nota baixa no teste impede as instituições de participarem do Fies. “Socialmente, o Fies foi ótimo, economicamente tem sido um desastre, do ponto de vista pedagógico o resultado não é o esperado e, sem dúvida, é maravilhoso para os donos das faculdades”, diz o professor Cristovam Buarque, ex-ministro da Educação. Se fosse um aluno, o programa — no mínimo — teria de enfrentar a recuperação.
Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725