John Rodgerson, executivo-chefe da Azul, mantém um par de luvas de boxe pendurado em sua sala. Embora não seja pugilista, elas são presente de um amigo impressionado com a resiliência da companhia — uma das três maiores do país — durante a pandemia de covid-19. “Ele me disse que somos lutadores”, afirma Rodgerson. Se o setor aéreo é um ringue, o histórico das aéreas é desolador, apanhando há décadas de adversários como a falta de crédito, os altos custos em dólar e políticas públicas erráticas. Desde a quarta-feira 24, porém, quando participou do lançamento do programa Voa Brasil ao lado de ministros em Brasília, o comandante da Azul exibe um discreto otimismo. “O programa é bom, porque põe a pauta da aviação na mesa do governo”, diz ele.
As companhias da área e o governo concordam que é urgente aumentar o volume de passageiros — a questão é como fazer isso. O Voa Brasil aposta na oferta de passagens a preços de até 200 reais — fora tarifas e taxas de embarque — para atrair públicos específicos. Sua primeira etapa é focada nos 23 milhões de aposentados do INSS, que poderão comprar até dois bilhetes por ano, desde que não tenham voado nos últimos doze meses. Em 2025, a iniciativa deve ser ampliada para os cerca de 3 milhões de estudantes beneficiados por programas federais, como o Fies e o ProUni. “Esse é o primeiro passo de inclusão social do setor”, disse a VEJA o ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho (leia a entrevista abaixo). Num país com mais de 200 milhões de habitantes, o mercado aéreo teve em torno de apenas 30 milhões de passageiros no ano passado, que compraram 112 milhões de bilhetes. “Queremos incluir, pelo menos, 3 milhões de pessoas nessa conta”, planeja o ministro.
Para os especialistas, contudo, o Voa Brasil não ataca o principal problema do setor: o resgate da aviação regional. “É aí que está a grande demanda potencial”, diz Ricardo Jacomassi, sócio da TCP Partners, consultoria focada em reestruturação de empresas. No início dos anos 1990, o então presidente Fernando Collor chacoalhou o setor ao abrir o mercado de voos internacionais para companhias estrangeiras. Com isso, grandes empresas nacionais, como a Transbrasil, perderam quase metade de suas receitas e foram à falência. As sobreviventes se atiraram, então, sobre as rotas regionais, arruinando pequenas companhias. Para completar, Collor acabou com a política de controle de preços no setor. No começo, isso levou ao barateamento das passagens e aumento de clientes. Anos depois, o negócio desandou para uma guerra tarifária predatória, que comprometeu a saúde financeira das empresas. “Foi uma política de abertura muito equivocada”, diz Ingo Plöger, presidente da consultoria IPDES e que já integrou os conselhos de administração da Embraer e da extinta Varig. Para piorar, as empresas remanescentes operavam aeronaves maiores, incapazes de pousar em pistas de pequenos aeroportos. “Na década de 1950, mais de 400 cidades recebiam voos regulares. Hoje, são cerca de 100”, compara Plöger.
Remontar essa malha regional vai exigir muitos anos de trabalho. Preparar pequenas e médias cidades para receber novamente voos é apenas uma parte da tarefa. A outra é garantir que as empresas tenham condições de operar. Enfrentando problemas financeiros crônicos, agravados pela pandemia, o setor acumula prejuízos, e recuperações judiciais são comuns, como a da Gol, com uma dívida de 20 bilhões de reais. A principal esperança é o projeto de lei 1.829/19, aprovado em junho pelo Senado, que aguarda votação na Câmara dos Deputados. O texto permite que o Fundo Nacional da Aviação Civil, hoje com cerca de 3 bilhões de reais em caixa, seja utilizado como fiador em operações de crédito das aéreas, seja para renovar sua frota, seja para equilibrar as contas. Rodgerson, da Azul, apoia a ideia. “Dizer que se trata de socorro me ofende, porque não é dinheiro a fundo perdido. Pagaremos juros por ele, mas é o mínimo de que precisamos”, diz. O tripé composto de crédito ao setor, desenvolvimento da aviação regional e atração de novos passageiros parece ser um caminho para evitar que, no futuro, mais executivos da aviação pendurem luvas de boxe em suas salas.
Inclusão no ar
O ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, falou a VEJA sobre os planos do governo para incentivar o setor aéreo.
Qual é o balanço da primeira semana do Voa Brasil? Vendemos cerca de 2 200 passagens. Esperamos que o Voa Brasil se torne mais conhecido, já que as companhias aéreas vão divulgar o programa.
Como a iniciativa pode ajudar o setor? O Voa Brasil é o primeiro programa de inclusão social do setor e não envolve recursos públicos. Em 2023, as aéreas venderam mais de 100 milhões de passagens para 30 milhões de pessoas. Com o programa, queremos adicionar mais 3 milhões de passageiros. As aéreas também querem incluir quem nunca voou. Trabalhamos com a capacidade ociosa dos aviões, que chega a 20%. Esperamos chegar a 135 milhões de passagens em 2026.
A infraestrutura está preparada para isso? Até dezembro, entregaremos obras em 36 aeroportos, e anunciaremos mais quinze projetos. São investimentos públicos e privados de mais de 4 bilhões de reais. Vamos investir também na aviação regional.
Por que o governo quer vincular o socorro às aéreas à compra de aviões da Embraer? Nos Estados Unidos, 49% da frota é da Boeing. Na França, 48% é da Airbus. No Brasil, só 12% é da Embraer. Então, a orientação do presidente Lula é de estimular a compra de aviões nacionais. Isso também vai fortalecer a aviação regional.
Quando a ajuda às empresas estará disponível? A matéria já foi aprovada pelo Senado. Após o recesso, esperamos votá-la na Câmara. Sinto que há um clima de colaboração do Congresso. Serão quase 5 bilhões de reais para fortalecer as companhias aéreas.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904