Desde agosto de 2015, quando viralizou um vídeo de pesquisadores removendo um canudo da narina de uma tartaruga, não houve material que sofreu maior escárnio público do que o plástico. Em meia década, as campanhas de conscientização sobre os efeitos perversos da poluição — extremamente necessárias em um cenário de sujeira descontrolada — surtiram efeito. Diversas cidades, em diferentes lugares do mundo, incluindo as capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, aprovaram legislações específicas para banir o plástico de uso único, a exemplo de canudos e talheres descartáveis. Mas o cenário mudou. Com o avanço da pandemia da Covid-19, o material ressurgiu em variados formatos, mas agora como estratégia de proteção. Barreiras físicas em supermercados, protetores faciais, coberturas em máquinas de pagamentos e vedação em pratos de comida, entre muitos outros usos, tornaram o plástico onipresente na crise do coronavírus. Em questão de meses, a população preparada para eliminar um dos vilões dos oceanos se viu, quase literalmente, embrulhada pelo material.
Todos os anos, 8 milhões de toneladas de plástico chegam aos oceanos. Cerca de 700 espécies que vivem no mar já foram contaminadas pela poluição e quase todas as aves marinhas ingeriram algum material plástico. Os microplásticos, pedaços que se quebram até ficarem com menos de 5 milímetros, foram encontrados na água potável, no ar e nos alimentos, e estão presentes em todos os continentes, até na Antártica. Não à toa, o material foi tratado como praga que deve ser combatida com tenacidade. A pandemia, porém, deu um trégua à busca obsessiva por eliminá-lo. Estima-se que, apenas nos Estados Unidos, a produção de uso único aumente entre 250% e 300% em 2020, de acordo com a Associação Internacional de Resíduos Sólidos. O avanço será puxado por produtos de proteção individual, como máscaras, viseiras e luvas. Os plásticos são essenciais para algumas atividades e precisam ser pensados para ter vida útil longa — ou seja, na contramão dos descartáveis. “O material não pode ser tratado como vilão”, diz o urbanista especializado em gestão ambiental Carlos Henrique Andrade de Oliveira. “Ao mesmo tempo, as empresas devem oferecer opções mais sustentáveis e os consumidores precisam ter hábitos críticos.”
No surto, quando o que está em jogo é a vida humana, a avaliação pode ser mais difícil. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em maio houve um aumento de 28% na coleta de resíduos recicláveis, como plástico e papelão, no lixo doméstico. Mas não significa que a reciclagem aconteça — no Brasil, menos de 2% do plástico produzido é recuperado. Para o biólogo e gerente nacional da The Nature Conservancy (TNC) Brasil, Samuel Barreto, é essencial que haja investimento em políticas públicas. “Não adianta exagerar em camadas de embalagens se quem as manuseia pode estar contaminado”, diz. “O vírus está em todos os lugares e sobrevive nas superfícies.”
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Clique e AssineO novo desafio é redescobrir em quais situações o material é bem-vindo e as ocasiões em que será, mais uma vez, empregado em demasia. Para a cientista marinha da ONG Oceana, Lara Iwanicki, a pandemia trará a discussão sobre separar a importância para fins sanitários e de saúde daquilo que é evitável. “O material vai fazer parte da vida pós-pandemia e o momento reforça a necessidade de redução de produção”, diz a especialista. “Com a paralisação dos trabalhadores de reciclagem, por exemplo, o sistema entra em colapso.” No momento em que cidades planejam a reabertura e permitem a reaproximação, o plástico tem sido um aliado. Um exemplo é o caso de idosos que puderam sentir o conforto de um abraço após o distanciamento social graças à proteção que o material é capaz de proporcionar. O plástico pode ser nocivo para o planeta, mas agora descobre-se também que ele ajuda a proteger a vida.
Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695