Algumas certezas, para desalentos dos convictos, envelhecem rapidamente. No começo da semana passada, o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, declarou em alto e bom som que o governo não voltaria atrás em seu esforço de tributar as compras feitas em sites de comércio eletrônico estrangeiros, que utilizam brechas na legislação para vender produtos sem pagar impostos. Bastante assertivo, ele comentou que, no governo, nem havia debates sobre rever o fim das isenções para itens importados no valor de até 50 dólares, anunciado na semana anterior pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Correto na sua defesa, o secretário da Receita infelizmente não sabia que, àquela altura, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já estava convencido da necessidade de um recuo na medida.
Enquanto no ministério a iniciativa ainda era dada como certa, Lula convocava, para o começo da noite da mesma segunda, uma reunião de emergência com a equipe econômica no Palácio da Alvorada. Na ocasião, sem nenhuma discussão mais profunda sobre o assunto, ele pediu para manter a isenção, que beneficia principalmente varejistas asiáticas como a Shein, a AliExpress e a Shopee. Esses e-commerces se tornaram bastante populares nos últimos anos por trazerem encomendas ao país a preços baixos — segundo os seus concorrentes brasileiros, eles conseguem isso adotando medidas fraudulentas, como, por exemplo, dividir pedidos em diversos pacotes com produtos abaixo de 50 dólares, para evitar os impostos, prática que negam fazer.
A batida em retirada de Lula teve relação com o imenso rebuliço causado nas redes sociais com o anúncio da taxação. O governo estava desavisado quanto à reação que a medida poderia gerar, a ponto de ter jogado a nova gestão numa de suas piores crises de impopularidade em seus pouco mais de 100 dias. A princípio, a primeira-dama, Janja Lula da Silva, entrou em campo para minimizar os danos nas redes. Ela respondeu a um tuíte da página Choquei, especializada em fofocas e celebridades, e afirmou erroneamente que a taxação não atingiria o consumidor, apenas as empresas. Depois, ao perceber que as suas explicações, assim como as de Haddad, não estavam convencendo, avisou Lula sobre a rejeição na internet. Uma pesquisa da Quaest, feita entre 13 e 16 de abril, depois do anúncio da taxação, mostrou que a reprovação do governo aumentou 9 pontos porcentuais em um mês, passando para 29%. Obviamente, nem todos os descontentes são compradores de bugigangas no universo digital. Mas a taxação realmente não ajudou.
Preocupado, Lula cedeu. Na terça-feira 18, ao confirmar o recuo do governo, Haddad afirmou que o presidente considerava que a medida confundia o consumidor e que ela não poderia onerar quem age de boa-fé. Ao comunicar a sua derrota e que a decisão já estava tomada, o ministro afirmou que vai continuar buscando, por meio do reforço de fiscalização, mais receita junto aos sites estrangeiros. Mas admitiu que a opção é menos eficiente do que se fosse combinada com fechar a brecha do limite de 50 dólares. Com isso, os 8 bilhões de reais de arrecadação adicional, projetados pelo ministério com os sites internacionais, ficam em risco. Na quinta-feira 20, ele buscou ainda amenizar a percepção negativa, anunciando que a Shein faria parte de um plano de conformidade com a Receita, sem dar mais detalhes sobre ele.
De qualquer forma, consumada a virada sofrida nos minutos finais, Haddad teve o primeiro grande sinal das dificuldades que enfrentará para pôr em prática o novo marco fiscal, criado pelo Ministério da Fazenda para substituir a regra do teto de gastos. A questão não é apenas a decisão em si, mas a maneira como ela foi tomada. O veto presidencial não se baseou em critérios técnicos ou em uma revisão estratégica da questão econômica. Ele simplesmente aconteceu em função da gritaria nas redes. “O governo se mostrou sensível demais à pressão popular”, critica Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central. “Obviamente, ele tem de ouvir a população, mas anseios de curto prazo não são atendidos sem sacrificar o futuro. É preciso saber persistir em uma ação impopular, mas necessária.”
Mambembe e feito de última hora, o recuo foi visto com preocupação por analistas políticos, economistas e agentes do mercado financeiro. Apenas alguns minutos depois do anúncio feito por Haddad na terça-feira, o governo apresentou ao Congresso o seu arcabouço fiscal, detalhando a nova regra. A revelação reforçou a percepção que se tinha sobre o projeto: ele não tem como foco conter os dispêndios do governo, mas depende principalmente de aumentar a receita com impostos. De um lado, ela até limita aumentos de gastos se forem vinculadas a receitas extraordinárias, como dividendos de estatais, vendas de concessões e de patrimônio. Mas, de outro, tirou a regra de contingenciamento de despesas quando o resultado primário está ameaçado, e ainda mudou a Lei de Responsabilidade Fiscal, flexibilizando o não cumprimento da meta. O presidente só precisará mandar uma carta ao Congresso explicando a falha. “O arcabouço é um modelo que autoriza o governo gastar e buscar mais receita depois. Mas essa fragilização da obrigatoriedade no cumprimento do resultado primário deve fazer com que o governo não persiga efetivamente essa meta”, comenta Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper.
Surpreendentemente, até mesmo empresas que, alega-se, seriam as mais prejudicadas afirmaram concordar com a medida de Haddad. Em nota enviada ao ministro, o diretor global de operações do Grupo Sea, do qual a plataforma Shopee é subsidiária, Gang Ye, escreveu apoiar “totalmente esta decisão”. Depois do recuo, um importante empresário do varejo brasileiro reclamou a VEJA: “As bolas de ferro amarradas no pé do varejo nacional continuam e são pesadas. Imagina uma maratona disputada sem igualdade de condições, com cinco corredores com bolas de ferro, e outros cinco sem”.
Se o governo nem mantém o combate a uma evasão fiscal que prejudica as varejistas brasileiras, as quais passam por um momento de dificuldades, como tomará as medidas difíceis para garantir que o arcabouço seja respeitado? Haddad reafirma que não vai aumentar impostos para cumprir a regra fiscal, e que pode conseguir os 155 bilhões de reais para zerar o déficit em 2024 apenas ampliando as receitas. Por enquanto, anunciou 110 bilhões de reais em medidas, ainda não aprovadas no Congresso, mas 8 bilhões de reais já caíram com a repentina decisão de Lula. Quando outros grupos se mobilizarem, novas perdas podem acontecer. Foi um mau começo.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838