A construtora chinesa Evergrande, a segunda maior do país, experimenta uma inusitada simbiose com a cidade de Shenzhen, onde fica sua sede. Assim como a antiga vila de pescadores que virou uma das mais cintilantes metrópoles asiáticas em menos de quatro décadas, a empresa fundada em 1996 se tornou um colosso. Impulsionada por projetos faraônicos, um mercado imobiliário em crescimento exponencial e um fluxo de recursos aparentemente infinito, a Evergrande inflou de tamanho e, contrariando a crença de que era grande demais para quebrar, bateu nos últimos dias às portas da insolvência. Com uma dívida na casa dos 300 bilhões de dólares, disseminou um sentimento de pânico mundo afora, com ondas de choque em setores tão diversos quanto o de finanças globais e exportação de commodities.
Com 778 canteiros de obras em 223 cidades, a Evergrande parou na semana passada. Comandada pelo bilionário Xu Jiayin, dono de uma fortuna estimada em 9 bilhões de dólares, a construtora vinha sangrando forte nos últimos meses. Desde 2020, suas ações tiveram queda acima de 90%, para 4,5 bilhões de dólares. Ao todo, cerca de 80 000 chineses ajudaram a financiar a companhia em dificuldade (boa parte deles funcionários). Grandes nomes das finanças do Ocidente, como Allianz, Ashmore, BlackRock, UBS e HSBC, também aportaram dinheiro. Na última semana, a empresa deu mostras de que não terá como honrar sua dívida, começando pelos 980 milhões de dólares de juros com vencimento até o fim do ano. “Os chineses já sabiam que havia problemas sérios com a empresa desde outubro, quando as ações da Evergrande deram a primeira ‘barrigada’. O resto do planeta, no entanto, só despertou para o problema agora”, diz Pablo Spyer, sócio da XP.
Na segunda-feira 20, as bolsas de valores do mundo todo registraram uma das maiores quedas coordenadas desde a eclosão da pandemia da Covid-19, no início do ano passado. O abalo é resultado do temor de que a derrocada da Evergrande seja o prenúncio do estouro de uma bolha imobiliária chinesa, preconizado há quase uma década. Trata-se de uma hecatombe com potencial de abalar produtores e exportadores de matérias-primas como ferro, carvão, aço, cobre, zinco, níquel e alumínio, com efeitos dramáticos principalmente sobre os países emergentes. No Brasil, a perspectiva de tamanho risco foi suficiente para, em um dia, derrubar em 2,33% o Ibovespa e 3,30% do valor da mineradora Vale, que tem a China como seu principal cliente. Nos três dias seguintes, o Ibovespa voltou ao patamar anterior.
Uma frase recorrente entre especialistas em finanças globais diz que quando a China espirra, o mundo fica doente. No caso do Brasil, a situação é particularmente preocupante. O banco americano Wells Fargo apontou a economia brasileira entre as mais vulneráveis a uma desaceleração da potência asiática, ao lado da de Singapura, África do Sul, Chile, Coreia do Sul e Rússia. Altamente dependente do comércio com a China, o Brasil pode ter seu índice de crescimento comprometido por uma eventual crise do outro lado do mundo, uma vez que as compras chinesas variam de 2% a 6% do PIB nacional. Outra agravante é que, se uma crise chinesa realmente acontecer, os investidores internacionais tendem a ficar mais avessos a riscos, prejudicando ainda mais o país, que já enfrenta queda na taxa de investimento estrangeiro.
A crise provocada pela Evergrande trouxe a financistas de todo o mundo uma sensação de déjà-vu associada ao estouro da bolha imobiliária americana em 2008, provocado pela quebra do banco Lehman Brothers. Ambas as situações têm de fato semelhanças, mas existe uma diferença fundamental. O mercado de títulos imobiliários tóxicos que foi à ruína nos Estados Unidos é produto de uma economia puramente capitalista. Na China, as digitais do Partido Comunista estão por toda parte em negócios que, mesmo com dimensões titânicas, têm pouquíssima transparência para os padrões ocidentais. Ao mesmo tempo que manifesta a intenção de deixar a Evergrande naufragar para dar o exemplo de que não vai tolerar casos similares, também não pode deixar a economia sofrer sem intervir fortemente.
Uma crise generalizada no mercado imobiliário chinês traz riscos de tensões sociais bem no momento que Xi Jinping, o líder do país, promove uma grande reforma para concentrar mais poderes e alterar a natureza do crescimento do PIB chinês. Nas últimas décadas, a China estimulou o maior êxodo rural da história da humanidade para as suas grandes cidades, fluxo que lentamente vem se revertendo nos últimos meses, na esteira da pandemia. Para dar fim à forte dependência do crescimento baseado em dívida e na construção civil, o governo de Xi instituiu em 2020 três métricas de endividamento máximo que as incorporadoras precisavam respeitar. A Evergrande falhou em todas. Para piorar a situação da empresa, a crise da Covid-19 causou uma queda de 3,2% no setor imobiliário chinês entre janeiro e agosto, diante do mesmo período do ano passado. Xi Jinping chegou a declarar que casas são feitas para morar e não para especular. “Tenta-se atualmente fazer uma melhor distribuição de renda na China e aumentar o consumo. O problema é que isso aumenta a intervenção estatal”, diz Welber Barral, estrategista de comércio exterior do Banco Ourinvest.
Para solucionar a crise e acalmar os mercados mundo afora, o governo chinês estuda a possibilidade de uma implosão controlada da Evergrande. A forma como isso aconteceria não está clara ainda, mas uma possibilidade seria punir a empresa e seus executivos, salvar o que fosse possível da companhia e repassar seus contratos para construtoras menores — o estatal Banco do Povo da China já anunciou a injeção de 37 bilhões de dólares no sistema financeiro. Isso afastaria riscos imediatos decorrentes da quebra de um colosso como a construtora de Shenzhen. Mas não eliminaria a possibilidade de novos problemas que provoquem o estouro da bolha chinesa e a contaminação da economia global. O mundo segue atento aos espirros do gigante.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757