O desempenho da economia brasileira no começo do ano exibe boas notícias e esconde algumas más. Do lado positivo, o país começou 2024 com crescimento mais forte que o previsto e espraiado por vários setores. O produto interno bruto (PIB) avançou 0,8% no primeiro trimestre ante o último trimestre do ano passado, conforme dados divulgados na terça-feira, 4, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na comparação com o mesmo período de 2023, o aumento foi de 2,5%, obrigando os analistas a recalcular as projeções para o restante do ano. Na análise dos resultados, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, observou que o número foi puxado por serviços e maior consumo das famílias, e integrantes do governo comemoraram o fato de que o Brasil deverá retomar a oitava posição entre as maiores economias do mundo.
Em uma análise superficial, tudo isso pode até ser verdade, mas basta analisar as informações com maior profundidade para concluir que infelizmente não há motivo para festa. O problema é que boa parte do crescimento advindo do consumo, como bem apontou o ministro Haddad, é alimentada por “anabolizantes” fiscais que não só custam caro, como podem repetir uma fórmula do passado tão conhecida quanto traumática. “Um país com o crescimento sistematicamente puxado pelo consumo tende a ter problemas macroeconômicos clássicos mais cedo ou mais tarde”, afirma o economista Fabio Giambiagi, pesquisador associado da Fundação Getulio Vargas (FGV). Os desequilíbrios, explica, passam pelo aumento rápido das importações e, principalmente, pela inflação, que começa a subir conforme a demanda ultrapassa a oferta e corrói o aumento de renda que a sustentou. “Há benefícios disso no curto prazo, mas eles não são sustentáveis. O melhor seria o governo controlar a ansiedade”, diz Giambiagi.
A fórmula do consumo como motor da economia, com o apoio de dinheiro público despejado em diversos setores, crédito farto e mercado de trabalho no limite do pleno emprego, foi uma das bases da manutenção do crescimento do país entre 2011 e 2014, no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Não por acaso, desaguou em descontrole inflacionário seguido de aumento dos juros, na disparada do desemprego e na grande recessão de 2015 e 2016, quando a economia brasileira afundou 7% e viveu um dos piores momentos em um século. A receita para evitar o desastre passa pela ampliação dos investimentos na forma de aportes das empresas e do próprio governo em maquinário, tecnologia, construção e infraestrutura. É isso que amplia a capacidade produtiva do país para dar conta de aumento da demanda. Mas, para investir, o governo precisa de dinheiro, e sua folga orçamentária é pequena. Os investimentos privados, por sua vez, só crescem quando há juros baixos, previsibilidade econômica e confiança — atributos que, ressalve-se, estão sob ameaça. “O balanço de riscos piorou e, por isso, já vimos o Banco Central desacelerar o ritmo de cortes da taxa de juros”, diz Alberto Ramos, diretor de pesquisa macroeconômica do banco americano Goldman Sachs para a América Latina.
Recusa em racionar gastos, inconsistência das metas fiscais e intervenção na Petrobras são apenas alguns dos episódios mais recentes do governo Lula que ajudaram a piorar os ânimos dos investidores. “Quem financia a dívida do governo é o mercado, e, se ele vê que essa dívida está crescendo e os riscos aumentando, irá cobrar um prêmio maior nos juros”, diz Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro, da FGV, dedicado a perspectivas econômicas. “E juros mais altos são muito ruins para o setor produtivo.”
Deprimidos desde a crise de 2015 e tendo encolhido 3% só no ano passado, os investimentos aumentaram 2,7% no primeiro trimestre de 2024 na comparação anual. O resultado é bom, mas a dúvida é se vem para ficar. “Depois de quedas tão fortes, é natural que os investimentos tenham uma recuperação, mas não dá para afirmar que estão fortes e que a confiança do empresário voltou”, diz Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil do banco suíço UBS Global Wealth Management. Com o fôlego do começo do ano, os desembolsos do país com investimentos voltaram a representar perto de 17% do PIB — abaixo da média da América Latina, de 20%, e pior ainda na comparação com os 23% dos países que integram a OCDE, a organização que reúne as economias mais desenvolvidas. O próprio Brasil, duas décadas atrás, alcançou uma proporção de investimento que passou dos 20% do PIB. “Para nossa economia crescer 2,5% ano a ano e sem gerar inflação, essa taxa tem de ser de pelo menos 18% ou 19% do PIB”, afirma Srour.
Enquanto isso, a outra perna que segura o PIB, o consumo, colhe os resultados da série de incentivos vertidos pelo governo desde, pelo menos, a disputa presidencial de 2022. Eles incluem um Bolsa Família que triplicou de tamanho, reajustes mais fartos para o salário mínimo, aposentadorias e diversos outros benefícios, além de uma série de despesas públicas pulverizadas em um orçamento federal que, desde a substituição do teto de gastos pelo novo e mais leniente arcabouço fiscal, não parou mais de inflar. Na virada do ano, muitos brasileiros ainda contaram com o pagamento excepcional de 90 bilhões de reais de antigas dívidas da União, os precatórios, represados de anos anteriores. Desse volume, estima-se que 40 bilhões viraram consumo. “Os cortes de juros também ajudaram, e a concessão de crédito está subindo desde o final do ano passado”, diz Julia Gottlieb, economista do banco Itaú Unibanco.
Um mercado de trabalho surpreendentemente resistente — em abril, a taxa de desemprego, de 7,5%, caiu ao menor nível em dez anos para o mês — completa o quadro que fez o PIB evoluir no primeiro trimestre. O consumo das famílias, de acordo com o IBGE, cresceu 4,4% e viu sua participação subir para perto de 65% do PIB no primeiro trimestre, marca poucas vezes vista no passado. “O efeito do consumo e das transferências públicas como grande promotor do crescimento tem data para acabar”, diz Thiago Xavier, economista da Tendências Consultoria. “A foto do momento é boa, mas há muitas preocupações quando olhamos para frente.” O receituário para o crescimento sustentável, com estabilidade econômica que abra caminho para juros estruturalmente baixos, investimentos perenes e construção contínua da produtividade do país, é conhecido. As consequências de negligenciar esses princípios também já foram testadas e são desastrosas. O governo conhece bem as opções — ainda há tempo de escolher a melhor delas.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896